
[78º Festival de Cannes] Directors’ Factory Ceará-Brasil
Este texto faz parte da cobertura do 78ª Festival de Cinema de Cannes, que ocorre entre 13 e 24 de maio.
A Directors’ Factory é um projeto da Quinzena dos Cineastas do Festival de Cannes que visa oportunizar a entrada de novos talentos no cenário cinematográfico internacional, unindo jovens diretores para o desenvolvimento conjunto de filmes, estimulando a criação de novas ideias. Depois de passar por Taiwan, Chile, Dinamarca, África do Sul, Tunísia, Filipinas, Finlândia, Líbano e Sarajevo, o projeto mirou o Brasil por meio do olhar do cinema cearense. Sob a curadoria de Karim Aïnouz, produziu quatro curtas-metragem, todos filmados e finalizados na cidade de Fortaleza. São eles: Ponto Cego, de Luciana Vieira e Marcel Beltrán, A Vaqueira, a Dançarina e o Porco, de Stella Carneiro e Ary Zara, Como Ler o Vento, de Bernardo Ale Abinader e Sharon Hakim, e A Fera do Mangue, de Wara e Sivan Noam Shimon.
Alguns são os pontos comuns entre as obras, sendo o principal deles o protagonismo feminino. Engenheiras, vaqueiras, dançarinas, curandeiras e feras: as mulheres do Directors’ Factory são colocadas em situações de superação que, geralmente, envolve a figura masculina opressora, em contextos que muito se diferenciam uns dos outros. O mar é elemento intrínseco a todas essas histórias, e quando não se faz visualmente presente, é perceptível no som. Nomes formidáveis e ascendentes do cinema brasileiro, como Amandyra (Greice), Ana Luiza Rios (Mais Pesado é o Céu) e Isabela Catão (Motel Destino), protagonizam essas histórias que, muito embora diversas, se costuram através de tais ingredientes de destaque.
No presente texto, discorri a respeito dos quatro filmes:
Ponto Cego
Ponto Cego, dirigido e escrito em conjunto por Luciana Vieira e Marcel Beltrán, me fez rapidamente recordar um caso concreto vivenciado em minha rotina advocatícia. No caso, uma jovem mulher, trabalhadora de uma empresa de grande porte do ramo da aviação, ocupando um posto de trabalho geralmente atribuído a homens, sofreu assédio moral e sexual por anos em sequência, vindo de seu superior hierárquico que contava com muitos anos a mais que ela. O sofrimento de longa duração culminou no surgimento de problemas de saúde graves, e em que pese sua luta para levar o crime a conhecimento do alto escalão da empresa, nada foi feito concretamente, sendo necessário o acionamento da justiça para tentativa de solução e indenização pertinente. O caso aguarda, há 10 anos, por finalização.
O curta-metragem nos insere em situação semelhante. Marta (Ana Luiza Rios) é uma engenheira, trabalhadora do porto de Fortaleza, responsável pela manutenção das câmeras de vigilância e segurança do local. Seu superior hierárquico notoriamente se sente muitíssimo à vontade para tocá-la sem permissão enquanto lhe dá ordens e para chamar sua atenção fazendo uso de uma comunicação violenta, disfarçada de brincadeira e camaradagem.
A grandiosidade do porto, com seus containers gigantescos e guindastes em pleno funcionamento, compõem um espaço que, através do uso recorrente dos planos abertos, tornam Marta pequena e oprimida. A sensação causada por esse distanciamento é a da vigilância, da tensão constante que parece permear aquele lugar como um alerta de hostilidade, o que é ressaltado pelo ofício da trabalhadora com as câmeras e pela narração off que ela traz ao início do curta: vigiar é exaustivo. Marta vigia e zela pela segurança, mas é sobretudo vigiada nesse ambiente a ela inseguro. A amplitude do porto e a infinitude do mar de Fortaleza, de um azul esverdeado que enche os olhos, não tranquilizam, mas tornam tudo ainda mais claustrofóbico, aumentando a estranheza que paira na atmosfera fílmica.
Há um único respiro nos 20 minutos de duração de Ponto Cego: uma pausa para o café, onde outras mulheres trabalhadoras portuárias dividem suas experiências com relação aos homens daquele lugar e riem ao imitá-los, momento de rara união feminina que o trabalho vai findar por separar – isoladas são presas mais fáceis.
No ponto cego é onde o horror acontece. O que fica oculto do alcance da visão, aquilo que escapa do registro da câmera de vigilância defeituosa, é mais difícil de ser provado. Nós mesmos, como espectadores em agonia, assistimos tudo à distância, no escuro, e apenas ouvimos a ocorrência que levará a obreira ao estado de silêncio absoluto que ela vai adentrar, até que encontre forças, por fim, para falar – e enfrentar o sistema que a quer manter calada.

A Vaqueira, a Dançarina e o Porco
O curta se abre ao som das ondas do mar, mas o que vemos é a imagem de paisagem artificial de uma montanha rochosa, que logo, se revelará um quadro na parede de uma espécie de boate, um dos elementos do western surrealista feminino, sensual e sanguinário A Vaqueira, a Dançarina e o Porco, de Stella Carneiro e Ary Zara, e que vai compor o gênero ao unir-se com as botinas que guarnecem pés a passos lentos, o chapéu e a vestimenta da vaqueira trans interpretada por Jupyra Carvalho, a ameaça trazida pela arma exposta na cintura e a trilha sonora típica. Nesse contexto, sob as luzes vermelha e azul que se alternam para criar uma atmosfera tanto sexy como igualmente ameaçadora do curta, a vaqueira vem salvar sua amada, a dançarina interpretada por Amandyra, das garras e da arbitrariedade do empregador – um homem porco, que grunhe e emite sons como tal.
É notória a diversão de Stella Carneiro e Ary Zara na façanha de um western abrasileirado, desconstruído e moldado quase como uma história em quadrinhos, ao capitular, setorizar e sequenciar ações, bem como exprimir, ausente a fala, sensações e sentimentos pelo destaque de olhares, toques e corpos em close-up que funcionam como fio narrativo. Os realizadores dividem a tela na diagonal tanto para expressar conexão, como, por exemplo, ao trazer os olhares das amadas em contraponto, como para exprimir a rivalidade entre a vaqueira e o porco. Há, ainda, sequências de violência em fotomontagem que vão ressaltar o aspecto de literatura quadrinesca de humor sanguinolento e asqueroso.
A dinâmica surrealista e estilizada de A Vaqueira, a Dançarina e o Porco, que traz a vaqueira como uma mulher que não só desempenha o papel do cowboy, mas que atua como vingadora e justiceira que almeja fazer jorrar o sangue do supervilão, faz remeter ao longa destoante da competitiva da 75ª Berlinale, Reflection in a Dead Diamond, de Hélène Cattet e Bruno Forzani. Ao movimentar o cinema conceitual e flertar com o experimental na competição mais importante de um festival tão tradicional, o filme de Cattet e Forzani é um aceno ao fortalecimento desse cinema de cruzamentos de gênero que foge à convencionalidade, tal qual o curta de Carneiro e Zara em meio às obras mais sensíveis que o acompanham no projeto.
A transmissão da sensualidade vem, para além dos toques e corpos em destaque, por meio da ideia de suspensão do tempo que paira sobre as duas amadas. Um enlace das mãos transcende para torná-las membros pulsantes de um desejo que prolonga o momento, que tira a relevância de tudo que está ao redor. A cachaça servida no copo de shot transborda seu líquido de modo a ser, outrossim, elemento de volúpia, no capítulo intitulado como Uma Cachoeira de Prazer.
A narrativa à la princesa em perigo, aqui, passa muito longe de seu conceito patriarcal. Em A Vaqueira, a Dançarina e o Porco, a salvadora é uma mulher trans, e a mocinha, uma mulher negra que de frágil nada contém. A supervilanização é, por outro lado, o elemento mais convenientemente tradicional dessa narrativa subversiva – as pitadas de humor o ridicularizam ao ponto da caricatura e da repugnância que exala de seu comportamento animalesco.

Como Ler o Vento
O cinema realizado em representação e representatividade de povos que tiveram e ainda têm suas identidades assassinadas e colonizadas carrega, necessariamente, uma essência de reconexão que viabiliza a recuperação daquilo que outrora fora perdido. É complexo o exercício de unir passado e futuro em um mundo onde parece não haver espaço para se refletir ancestralidade. Ainda mais labiríntica a proposta de conciliar ancestralidade, ou seja, esse elo do passado com o presente, com o futuro. É o que se permite Como Ler o Vento, de Bernardo Ale Abinader e Sharon Hakim, uma obra que não deixa, em sua temática, de tratar de um futuro distópico cuja proposta de cura vem, justamente, da medicina tradicional indígena.
No Ceará do futuro de Como Ler o Vento, pessoas adoecem em razão da presença de plástico em seus corpos. Não sabemos como essa “infecção” se dá. Pedaços de sacolas plásticas são retirados da pele ou expelidos pelo estômago dos doentes, que buscam a curandeira Cássia e o remédio extraído de suas plantas. Uma anciã adoecida, Cássia transmite seus conhecimentos à sua discípula Marjorie (Isabela Catão), para que ocupe seu lugar na medicina natural.
Trabalhando a conexão dessas duas mulheres de gerações diferentes, o curta-metragem insere elementos espirituais, como vozes ao vento, em reforço à luta pela preservação da ancestralidade nesse contexto futurístico. O próprio vento torna-se personagem, como parte da medicina que precisa ser compreendida e colocada em prática: a personagem de Isabela Catão captura o vento num pote de barro, sendo esse o ápice da demonstração do conhecimento que adquiriu.
Conduzido por uma certa formalidade de roteiro e atuações, Como Ler o Vento é bonito em sua sensibilidade ao trabalhar tantas linhas de conexão – mestre e pupila, passado, presente e futuro – e contrapontos – ancestralidade e poluição, elementos naturais e plásticos – mas toma um caminho dramático previsível que soa como um leve desapontamento, tornando secundária a relação entre distopia e ancestralidade que o faz mais interessante.

A Fera do Mangue
“Havia um tempo em que um homem com poderes ilimitados exigia descendentes. Até que uma de suas vítimas libertou uma fera.” O patriarcado na representação de um mito litorâneo. Nos mangues cearenses, a sede de descendência e sexo de um homem de aspecto grotesco e monstruoso traduz-se no estupro de suas vítimas, cujas calcinhas são penduradas nas árvores adaptadas à salobra. A Fera do Mangue, de Wara e Sivan Noam Shimon, extrai da mitologia um trabalho visual repleto de elementos da natureza que o tornam orgânico e sensorial, como se sentíssemos na pele a areia da qual se levanta a fera guerreira que afrontará o homem poderoso.
É curioso como a obra desloca outras mitologias na construção da sua própria identidade. O vilão leva uma roupa e capa preta com detalhes roxos, unhas pretas com aneis (a semelhança ao órgão sexual masculino não é mera coincidência, já que os dedos são os primeiros a alcançarem a vítima), o rosto encoberto, uma figura quase representativa de uma versão masculina do arquétipo da bruxa, muito ligada à cultura europeia. A criatura na qual se transforma a vítima que não se calou, a dita fera do mangue, é uma espécie de árvore andante, presente em diferentes culturas para além das nossas, por exemplo, a representada pelo curupira.
Há um primor estético na construção de planos visualmente muito interessantes, que se aproveita bem da figura feminina imponente da protagonista diante da areia, da água lamacenta do mangue, dos troncos. Os realizadores trabalham, em muitos momentos, a imagem em forma de prisma, refletindo as muitas faces dessa mulher que se tornará mítica, que renascerá como fera, e representando sua própria mudança de olhar. Causa igualmente estranheza e interesse vislumbrar essa figura andando lentamente no manguezal, caminhar que se torna mais excêntrico pelo uso de jump cuts.
“O homem que proclamava poder sobre corpos foi reduzido a um sinal de alerta.” A Fera do Mangue se mostra uma poesia visual potente e necessariamente violenta, encerrando o ciclo dos curtas de luta contra a opressão, que, cada qual a seu modo e singularidade temática, vem proporcionar equivalência de armas às mulheres protagonistas que tomam frente dessa batalha contra o masculino.


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo e patrocínio. Agradecemos em especial a: Ana Carolina Ballan Sebe, Caio Pimenta, Eduardo Filho, Lucas Ferraroni, Maria Eliana Pilon, Renata Boldrini, Thiago Bocanera Monteiro, Tiago Maia e Wellington Almeida;
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