
[78º Festival de Cannes] Sirât
Este texto faz parte da cobertura do 78ª Festival de Cinema de Cannes, que ocorre entre 13 e 24 de maio.
Para a religião islâmica, a ponte de Sirât seria um atravessamento, um divisor de limites e águas muito significativo, seja nas percepções de fé de seus seguidores, seja em seu sentido mais simbólico. Do ponto de vista da fé, trata-se de uma ponte suspensa sobre o inferno, que separa crentes e descrentes, sendo que o sucesso da travessia vai direcioná-los ao céu ou ao inferno. Sob o prisma figurativo, a ponte pode representar as dificuldades e desafios enfrentados no decorrer da vida, e que vão colocar suas crenças à prova, como um teste de justiça divina que vai determinar o destino individual de cada um a partir de suas ações, boas ou más. Há, ainda, metaforicamente, a crença de que a própria vida terrena seria essa ponte, cuja travessia nos leva ao destino final pós-morte – gozo ou sofrimento eterno.
Sirât, longa hispânico-francês da competição do 78º Festival de Cannes dirigido por Oliver Laxe e produzido pelos irmãos Almodóvar, Pedro e Agustín, traz em seu início, justamente, uma explicação simplificada do conceito de seu título a fim de orientar, minimamente, o espectador. Entre orientar e preparar o espectador há um abismo, e é melhor que assim o seja. Do mesmo modo que os personagens de Laxe atravessam, literalmente, o deserto do Marrocos, em 4×4 e jipes, sem ideia do que os espera no caminho, acessar a obra às cegas é uma escolha que privilegia, sobremaneira, a experiência fílmica do espectador. Portanto, o presente texto se limitará a discorrer a respeito sem detalhamento de spoilers, a fim de preservar o intuito da surpresa, aqui, de suma importância.
A experiência dos personagens aproxima-se à da vida, considerando o conceito islâmico que origina o filme. A experiência dos personagens, por seu lado, associa-se ao próprio experimento do cinema, do ato de assistir a um filme, e nos fornece, assim, elementos de imersão quase que magnéticos que vão nos desafiar no cruzamento desta ponte cinematográfica. Em Sirât, um pai (Sergi López, o inesquecível capitão Vidal de O Labirinto do Fauno) busca sua filha desaparecida juntamente com seu filho mais novo e o cachorro da família, entregando folhetos, fotografias e questionando pessoas numa rave em meio ao deserto do sul do Marrocos, onde ouviram dizer que ela estaria. A ponto de perder as esperanças, eles se juntam a um grupo que vai partir para uma última festa a céu aberto, agora na Mauritânia. A chegada ao destino é, justamente, a travessia desse deserto desconhecido, inóspito e selvagem, e os personagens partem levados pelo desespero da busca e pelo impulso de liberdade inspirado pelos jovens que encontram.
Nos primeiros, quiçá, trinta ou quarenta minutos de Sirât, é para as entranhas da rave que Laxe nos direciona e seduz. Planos gerais estonteantes da beleza fascinante do deserto anoitecendo, o céu num azul quase negro em contraste ao alaranjado da areia infinita, dão espaço para que mãos que carregam caixas imensas surgem na tela, e não é possível identificá-las até que a festa se inicie. O que virá depois é um frenesi absoluto, psicodélico e hipnotizador, de música incessante vinda daquelas caixas de sons colossais (e das salas de cinema de Cannes) e um mar de pessoas unidas e pulsantes num mesmo ritmo e energia. É impossível que nossos pés não balancem, que nossas cabeças não acompanhem o movimento. A quebra do compasso e da harmonia, que poderia causar apenas sensações de entorpecimento, vem do pai e seu filho, percorrendo aquele mar em total dissonância. Direto e sem rodeios, o diretor vai rumar nosso olhar aos personagens que interessam naquela infinidade de seres humanos, aqueles que acompanharão a família em seu itinerário de desespero.
Oliver Laxe constroi, com Sirât, um road movie movido a instintos. A ponte suspensa ao inferno que é o deserto mostra-se um mar de acontecimentos absolutamente inesperados no momento em que parece cair na monotonia. Os personagens levam-se pela energia da rave para lançar-se ao desconhecido – a racionalidade é colocada de lado para que domine a ânsia pela busca da filha, para que se esgotem todas as possibilidades, para que se viva, ainda que naquele contexto desolador, uma espécie de aventura. A noção do perigo parece suspensa. Afinal, qual seria o sentido racional de carregar uma criança de aproximados 12 anos e um cachorro filhote nessa jornada hostil? Por suas decisões emocionais, os personagens serão punidos por essa justiça desértica, a justiça divina que os levará ao céu ou ao inferno, a justiça da vida e do caminho que percorremos todos os dias.
A estética desértica unida à atmosfera de fim de mundo remete, invariavelmente, à franquia Mad Max. Laxe torna as máquinas – os carros, responsáveis por carregar tudo que os personagens possuem – o único bem, ou, ainda, a única divindade a se apegar, o único meio de concretizar aquela travessia. Vai destacá-las, em muitos momentos, com a aproximação de sua câmera em rodas e engrenagens muito próximas da estrada, provocando a estabilidade da adrenalina e mantendo a eletricidade de sua obra.
Os obstáculos impostos por esse road movie vão para muito além do pneu furado, da chuva, de desafios típicos do cinema do gênero. A jornada é de sobrevivência, é espiritual. O que é ser humano se não viver de escolhas, algumas emocionais, outras racionais, e receber as consequências, sejam elas justas ou injustas? Em Sirât, a sensação que fica é que toda consequência, ali, é injusta. Que qualquer punição é descabida. Que a irracionalidade com que permitiram-se levar os personagens, essa sim, é guiada, de certo modo, por algum propósito – sensações e sentimentos são os que nos restam, e esperança é o que nos move nesse deserto que insiste em nos castigar pelo que somos.


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo e patrocínio. Agradecemos em especial a: Ana Carolina Ballan Sebe, Caio Pimenta, Eduardo Filho, Lucas Ferraroni, Maria Eliana Pilon, Renata Boldrini, Thiago Bocanera Monteiro, Tiago Maia e Wellington Almeida;
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