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Cidade dos Sonhos (Mulholland Dr., 2001)

Cidade dos Sonhos (2001) parece se passar em um tempo não delimitado. Ainda que alguns figurinos e locações ecoem o icônico ano de 1999, a película é recheada por objetos como telefones antigos, um abajur vermelho vintage, uma lista telefônica, mapas impressos e um orelhão com moedinhas em seus últimos momentos de utilidade pública, além dilma caderneta de papel conhecida como “História do mundo em números de telefones”, cujo valor inestimável contabilizou pelo menos três corpos na mira de um assassino imbecil. 

Assim como no subsequente e ainda mais complexo Império dos Sonhos (2006) – que mantém o protagonismo feminino forte com Laura Dern – e também no anterior Estrada Perdida (1997), o cineasta, roteirista, ator, músico, pintor, marceneiro (…) David Lynch (1946-2025) parecia mais interessado na confusão de identidades. Ser ou desejar ser? A sensação diante da obra de arte é singular e se modifica a cada revisão. Vamos olhar rapidamente, com lentes polidas, para as personas que habitam oscilantes nestes corpos, um mer de noms em um fascinante caleidoscópio (sem lógica?) costurado pela montadora Mary Sweeney: Betty, Rita, Diane, Camilla.

A perspectiva de Diane (Naomi Watts) domina o percurso do filme. Presa na decadência de uma atriz rebaixada a papeis menores, durante o sonho ela se torna Betty. Após ganhar um concurso de dança jitterbug, a mocinha do interior chega a Los Angeles com o brilho nos olhos e a alegria de quem acabou de tomar sorvete pela primeira vez, tão mesmerizada que se empolga até pela recepção de um banner amassado no aeroporto. Movimentos de dança, em colagens que explodem na tela – como mais tarde as danças que fecharam com um raro alívio cômico o inferno desfocado de Império dos Sonhos – aqui se somam aos elementos recorrentes de diferença e repetição lynchiana, como uma estrada (perdida) e pouco iluminada capaz de bagunçar destinos e devires. 

Diane sonha com cowboys em currais, cangurus pugilistas e velhinhos em miniatura com sorrisos sardônicos capazes de se diminuírem a ponto de passar por debaixo de uma porta – não sem antes bater – além de uma tinta rosa choque que destruiu completamente a caixa de joias de uma esposa infiel. Betty conquista sem esforço a elegância de uma loira de Hitchcock, com direito a um cabelo alinhado, impecável e a um colar de pérolas – interessante esse artefato lhe ornamentar o pescoço, pois Lynch citava a joia como signo do filme. Torna-se em sua fantasia noturna não uma amante humilhada e ressentida, mas uma amiga que acolhe e protege uma vulnerável Rita (Laura Harring).

Os ecos de estrelas noir não se restringem à atuação de figuras resgatadas do passado, como a atriz Ann Miller. Rita Hayworth – cujo nome verdadeiro era Margarita Carmen Cansino – aparece não apenas no cartaz de Gilda (1946), mas como um lampejo em Laura Harring, primeira mulher latina a se tornar Miss USA, em 1985. Ao acordar na madrugada – dentro de um sonho – com os olhos injetados, Rita repete a palavra “silêncio”, e depois ao voltar llorando do clube onde no hay banda, procura por Betty com outra frase sussurrada em espanhol: “Dónde estás?”. Lynch, sem compactuar com práticas xenófobas da Hollywood clássica, não ocultou a origem hispânica de sua atriz, mas a ecoou em mais uma camada de mistério. 

Embora Laura Harring tenha afirmado que Lynch a dirigiu de maneira poética, utilizando metáforas como “caia do carro como uma boneca quebrada” e “ande como uma gatinha”, não é proveitoso pensar que os elementos utilizados pelo criador sejam propriamente poéticos ou se prestem a representar ou a simbolizar algo –  a caixa e a chave azul não significam… funcionam como transições temporais: o fim do sonho, o sinal do crime executado. Está tudo no filme. 

Justin Theroux possivelmente só consta como primeiro nome nos créditos para respeitar a ordem alfabética. Os homens de destaque na trama cabem em apenas um parágrafo, ainda que robusto, sendo um deles um diretor que é traído não só pela mulher, mas pelos produtores, que lhe tiram o poder criativo. O compositor e braço esquerdo de Lynch desde Veludo Azul (1986), Angelo Badalamenti dá vida a um “esnobe do café expresso”, um bilionário tão repugnante que sofre ao ter que balbuciar “guardanapo” para um garçom, um dos mafiosos que ameaçam produções cinematográficas. Há ainda Cookie, de host do clube Silencio a gerente de um hotel decadente, além de dois detetives que não concluem o caso da moça do brinco de pérolas e dos dois homens de terno no Café Winkie’s – um deles conta seu aterrorizante sonho ao outro e desmaia de susto e medo ao confirmar a presença de um poderoso mendigo coberto de chorume no local. Para completar as figuras lynchianas, Michael J. Anderson de Twin Peaks é posicionado de modo a parecer um gigante. 

O que Nietzsche chamava de força plástica aqui se dá numa linha de fuga onírica, ainda que não tenha permitido à protagonista escapar da tortura da memória e da culpa. De volta aos cinemas quase 25 anos depois, a obra-prima da carreira de Lynch continua a nos afetar e a nos tirar o sono – ainda que nos convide ao sonho – fugindo a chaves de leitura, finais palatáveis e sentidos previsíveis.

Doutora em Estudos de Linguagens pelo CEFET-MG

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