
Neuromancer
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“Um ano ali e ele ainda sonhava com o ciberespaço, a esperança morrendo um pouco a cada noite. Todo o speed que tomou, todas as voltas que deu e as esquinas de Night City por onde passou, e ainda assim ele via a matrix em seu sono, grades brilhantes de lógica se desdobrando sobre aquele vácuo sem cor… O Sprawl ficava agora a um longo e estranho caminho de distância sobre o Pacífico, e ele não era mais nenhum cara do console, nenhum cowboy do ciberespaço”
Há uns anos atrás um amigo meu, vendo meu exemplar de Neuromancer, clássico da ficção científica de William Gibson publicado em 1984, intacto na estante, disse que ele era chato. Eu relevei, botei na conta de sua falta de hábito de ler livros desse gênero. Aí outra pessoa próxima me disse que abandonou a leitura ali pela quinta página. E mais uma falou que parou na terceira. Curioso. E então, passado um bom tempo, resolvi pegá-lo para ler.
Toda vez que termino uma leitura, eu posto a foto do livro no meu instagram. Quando fiz isso com ele, logo chega na DM uma pessoa falando “Eis um livro que está há tempos na fila… Comecei a ler, parei, recomecei, parei de novo rsrs Uma hora vai”. Eu respondi apenas “É chato” com um emoji e ela reagiu com uma carinha de risada e falou “Então o problema não é comigo rsrs”.
De fato. Anotei no meu diário de leitura “a perfeita definição de ‘meudeusdocéu que cara chato do caralho'”. Não é querer desmerecer a importância da obra. Trata-se de uma das bases do subgênero que se convencionou chamar de cyberpunk, que no cinema inclui títulos como O Exterminador do Futuro (1984), Robocop (1987), O Vingador do Futuro (1990), entre outros. São obras que tratam de vidas arruinadas em contexto futurista, tecnologicamente avançado, muitas vezes distópico, abordando drogas, violência, precarização, capitalismo decadente, em meio a muito pessimismo.
Mas, sinceramente, nesse caso, é tão bobo e ao mesmo tempo hermético. Tudo é de difícil compreensão. Publicado em 1984, ele conta a história de Case, um hacker (ou “cowboy“) envenenado por ex-patrões, que passa a trama tentando se livrar do sintomas que sente. Ele conhece Molly, uma mercenária com implantes que incluem lentes sobre seus olhos e um conjunto de lâminas que saem por sob suas unhas. E ambos se envolvem em diversas atividades, num jogo cambiante de alinhamentos, com muitas revelações e reviravoltas. Falando assim parece (e é) até instigante e em retrospecto achei uma leitura interessante. Mas é muito morosa. Páginas e páginas se sucedem com descrições tediosas das ações que acontecem, preenchidas com o vocabulário criado para a narrativa.
O texto truncado não ajuda. “Case conectou o schleptz no zupt. O holograma herpto brilhou. Sentiu uma dor na perna e injetou uma dose de trepsis que o fez oscilar. Entrou na matrix confuso, mas logo se habituou ao lomex antes de flipar”. Eu acabei de inventar esse trecho, mas podia tranquilamente ser real.
Apesar dos nomes de componentes tecnológicos sendo jogados, o clima é de noir, como evocado pelo filme Blade Runner (também cyberpunk) alguns anos antes. Mas Phillip K. Dick, autor do romance que deu origem àquele filme, tem uma obra que é ao mesmo tempo paranoica e autodepreciativa, às vezes até com humor incerto, de uma forma que gera uma conexão. Neuromancer tem a sujeira, a decadência tecnológica, o pessimismo, mas Case não é um protagonista que cative. A construção de mundo é atrativa, mas os personagens são rasos e emocionalmente pouco desenvolvidos.
Mesmo assim, a noção de ciberespaço pré-internet que o livro cria é bastante imaginativa. Case, por exemplo, tem contato com pessoas da colônia de Zion e um deles, o piloto de nave Maelcum, o ajuda quando se conecta a esse sistema de simulação que é chamado de Matrix. Em determinado momento, ele, que estava conversando com a falecida namorada em uma praia, percebe que o “cenário” está falhando após tempo demais dentro do programa. Assim, ele consegue ver os caracteres da programação correndo sobre a imagem.
Agora os hieróglifos corriam pela areia, fugiam de seus pés, se afastavam quando ele se aproximava. – Ei – ele disse –, está quebrando. (…)
Eles estavam lá, na beira do mar. Linda Lee e a criança magra que disse que seu nome era Neuromancer. Sua jaqueta de couro pendia da mão dela, roçando a borda da arrebentação. Ele continuou caminhando, seguindo a música. O dub de Zion de Maelcum. Havia um lugar cinza, uma impressão de telas nas se deslocando, num padrão de moiré, graus de semitons gerados por um programa gráfico muito simples. Uma longa sequência de uma visão através de uma grade de metal, gaivotas congeladas sobre água escura. Vozes. Um espelho preto liso, que se inclinou, e ele era mercúrio, uma gota de mercúrio, deslizando, atingindo os ângulos de um labirinto invisível, fragmentando-se, fluindo junto, deslizando novamente…
– Case? Mon?
A música.
– Tu tá de volta, mon.
A música foi arrancada de seus ouvidos.
– Quanto tempo? – ele se ouviu perguntar, e sabia que sua boca estava muito seca.
– Cinco minutos, talvez. Tempo demais. Eu queria puxar o plugue, Mute disse não. A tela estava toda gozada, então o Mute disse pra colocar os fones em você.
Ele abriu os olhos. As feições de Maelcum estavam sobrepostas por camadas de hieróglifos translúcidos.
Familiar?


É claro que cada obra é uma obra, mas ler Neuromancer (Assim como o mangá Ghost in the Shell, aliás) é um enorme deja vu para quem já assistiu Matrix (1999). A trama em si não guarda tantas semelhanças, mas certos cenários, mecanismos e, claro, nomes, são muito parecidos (ou iguais). Dito isso, a forma como as cineastas Lana e Lilly Wachowski lidam com os temas que escolhem abordar em sua construção ficcional é muito mais atrativa, para além dos empréstimos e inspirações.
Reconheço as qualidades do livro justamente nesse sentido: de criar um mundo tão particular e tão novo que facilmente se tornou referência para gerações de pessoas leitoras e escritoras. Fico com a sensação que talvez uma releitura mais madura e sabendo de antemão os desafios do texto o favoreceriam, mas isso não impede de constatar que, sim, o texto é um desafio. Uma pena que minha proximidade com a obra acabou sendo mais no plano estético (e da curiosidade) do que no afetivo. Neuromancer tem um claro valor histórico, mas é uma leitura que não anima.


