
Sem Chão (Losing Ground, 1982)
Este texto faz parte da cobertura do 13º Festival Internacional Olhar de Cinema de Curitiba, que ocorre entre 12 a 20 de junho.
“Não exiba seu pênis como se fosse um pincel. Acho que é isso que me falta, porque não tenho nada para botar para fora.”
O êxtase, o transe, a sensação de ir ao céu e voltar. Essa percepção mística, quase que espiritual, é buscada inconscientemente pelo ser humano nas mais diversas esferas. Na religião, nos rituais, esse ápice é a aproximação com a entidade superior buscada, é o espaço interior que vai dar algum sentido à existência. Para o artista, em especial, talvez essa seja uma constante perseguição: a expressão artística em seu auge, que faz elevar para um estado de satisfação, de deleite, a sensação que transcende o estado físico. Para aqueles que não são artistas e para os não-religiosos, onde alcançar essa condição que faz deixar Sem Chão? Seriam as diferenças de gênero fatores determinantes que atuam como facilitadoras ou percalços dessa busca? Sara Rogers (Seret Scott), professora de filosofia e intelectual que transforma o tema em estudo e tese acadêmica, é a protagonista que vamos acompanhar naquilo que será um confronto entre a pesquisa da Academia e a experiência de êxtase em si.
Sem Chão é o segundo e último longa-metragem de Kathleen Collins, que faleceu precocemente, uma obra semi-autobiográfica que também por ela é roteirizada. De 1982, nunca foi lançado nos circuitos de cinema, e é considerado o primeiro longa-metragem dirigido por uma mulher afro-americana. Foi restaurado em 2015 por iniciativa da filha da diretora, e esse resgate o trouxe à baila novamente, com o devido reconhecimento de sua importância histórica, cultural e artística para o cinema estadunidense e mundial, principalmente, para o cinema realizado por pessoas negras. Foi prestigiado pelo 13º Olhar de Cinema (Festival Internacional de Curitiba 2024), que o exibiu na mostra Olhares Clássicos, onde tivemos a oportunidade de assisti-lo na tela grande.
Sara é uma mulher negra, elegante, séria, inteligentíssima e querida por seus alunos. Usando um óculos tipicamente intelectual, com os cabelos presos num coque bem feito, e se vestindo de forma serena com roupas claras e terninhos, ela transmite respeito e superioridade. Como mulher, é interpelada por alunos homens que com ela flertam, e lhe perguntam sobre o marido. O marido é Victor (Bill Gunn), um pintor bem sucedido e muito inspirado, que quando junto da esposa, a enquadra como uma obra de arte, como uma musa. “Peguei você num close”, é dito a ela, como representação de sua figura com uma fotogenia natural, artística, colocada nesse status pelo marido, mas também provocada por Kathleen Collins, que a posiciona sempre estratégica e belamente entre quadros, janelas, artefatos florais, velas, sob o sol, sob focos de luz. É como se ela fizesse parte de uma pintura, ou mesmo de um plano fílmico dentro da própria obra, trabalhando com essa metalinguagem entre a pintura, o imaginar filmes e o fazer filmes, equiparando tais expressões da arte.
Veja-se que a diretora trabalha com o protagonismo de personagens negros bem-sucedidos, que se permitem o luxo, por exemplo, de brindar um vinho no meio da tarde e mudar de casa com o objetivo único de buscar inspiração. São, de fato, pessoas negras que ocupam espaços intelectuais e artísticos onde geralmente não há representatividade. O passo antirracista que Collins dá com Sem Chão é tremendo, vez que o mundo está estruturalmente e socialmente acostumado a visualizar pessoas negras em lugares geralmente associados à pobreza e à subalternidade.
Sara é uma estudiosa do estado de êxtase, mas não consegue alcançá-lo. Victor, por outro lado, o encontra a cada pintura, a cada inspiração, da luz perfeita à musa inspiradora, seja numa paisagem, seja na naturalidade das pessoas que ele cruza e se relaciona. “Victor faz sexo o tempo todo”, é como ela define o constante estado de prazer que o marido encontra na arte. Para além da esposa, que lhe é musa, ele busca estímulo em outras mulheres, como uma condição e necessidade inerente ao artista. Como ele mesmo diz, há um mundo todo a ser pintado, e ele vibra com essa possibilidade. A protagonista se vê cada vez mais incomodada em precisar adaptar seu mundo às urgências artísticas do marido, que usufrui com facilidade dessa condição que ela analisa através de livros e escrivaninhas. Se vê sufocada enquanto todos à sua volta lhe recordam a arte em muitas de suas formas: sua mãe é atriz de teatro, seus alunos a equiparam a uma artista de cinema. Ela carrega um engessamento que clama por ser quebrado.
O incômodo pela liberdade do marido em contraponto ao seu insatisfeito estado de espírito dá lugar à exaustão. Sua elegância é minada pelo cansaço a ponto de apagar seu ar potente. A personagem notadamente adota uma postura insegura, um olhar cabisbaixo. “Você fica com aparência feia quando cansada”, é a observação sincera da personagem de Billie Allen, que interpreta sua mãe, recordando as exigências de que a mulher não se permita quedas sem comprometer sua beleza, o padrão inatingível.
A equiparação da pintura ao cinema é demonstrada por Kathleen Collins na forma como cada um se realiza. A preocupação com a luz, o posicionamento do personagem e sua relação com o espaço, os enquadramentos, estão presentes em ambas as formas de arte. Até mesmo a capacidade artística de tornar belo aquilo que naturalmente não chamaria a atenção: “É bonito ou é só a luz?”. A diferença está na dinâmica. Enquanto o cinema constrói imagem em movimento, a pintura eterniza a imagem estática. Enquanto no cinema, o transe do artista é compartilhado tanto por quem está à mostra nas câmeras como por quem está por trás delas, na pintura, trata-se de um sentimento privativo, exclusivo do pintor, cujas musas e objetos de estudo precisam estar inertes, imóveis – não há prazer nessa função. É o que ela chama de transe privado do artista, e que funciona, aqui, como representação do egoísmo do marido, que vai crescendo no decorrer de Sem Chão.
Sara vai notando a insuficiência de permanecer no campo dos estudos. Ela estuda os transes religiosos, o vodu haitiano, em meio a imagens de santos, velas, elementos brancos que remetem a um ideal religioso de pureza. O puro, o estático, não lhe cabe mais. O limiar entre a inércia e a efetiva procura se dá quando ela busca saber em uma vidente, uma mulher branca, o que ela sente em seu interior quando está fazendo a leitura de mãos, como num ato desesperado de compreensão daquilo que ela ainda não conhece. É seu impulso que a faz procurar pela magia que ela se percebe necessitada, ávida por se expressar e atender aos anseios de sua alma que vai pulsando gradativamente.
A protagonista solta os cabelos e abandona as roupas sóbrias e começa a usar temas coloridos e florais. Quando o marido leva a atual musa de pintura para a casa do casal, numa sequência interessantíssima de jantar a três em que paira uma atmosfera de estranheza entre todos, Collins faz movimentos de câmera horizontais rápidos para mostrar os lados isolados de uma enorme mesa, parando, por fim, para observar a beleza do vaso vermelho ao centro.
A decisão de mudança de Sara, a intelectual sedenta pelas sensações que não encontra nos livros, é aceitar o convite para fazer um filme. Duke (Duane Jones), um ator aposentado que ela já conhece em outro momento, surge como seu parceiro de cena. A diretora, aqui, se delicia naquilo que consiste “fazer filmes”. Permite que seus personagens narrem o ato e os movimentos da filmagem, enquanto obedecem aquilo que é narrado pelo diretor naquela metalinguagem, sem qualquer interferência além da voz que orienta a cena e dos corpos em movimento, tal como se o tempo estivesse paralisado naquele momento. Na dinâmica da atuação e da dança, ela vai ao céu e retorna, ela se entrega à sensualidade que é capaz de transmitir junto da figura de Duane Jones. O transe, finalmente, chega. Sara sai do abstrato para adentrar no campo físico do êxtase.
Após sair do chão e se elevar, a queda vem como um surto coletivo necessário para renovar as relações que perderam sentido. Sara e Duke, Victor e Celia, sua musa, se encontram naquilo que se transforma em lavação de roupa suja, em ciúmes e numa entrega aos instintos, à irracionalidade que revela intenções e faz máscaras caírem. O auge do surto faz recordar muito O Pântano, de Lucrecia Martel (2001), que vem anos depois de Sem Chão. Obedecendo apenas a impulsos, os quatro personagens dormem à beira de uma piscina em sacos de dormir. Victor, que se torna agressivo, pula na piscina congelante, no que culmina na intensa discussão que vai encerrar o longa, com genialidade: “Não exiba seu pênis como se fosse um pincel. Acho que é isso que me falta, porque não tenho nada para botar para fora”. Victor não suporta o caos selvagem que Sara assume quando encontra a expressão de sua alma. Na desordem que ela se torna, é onde ela encontra seu transe privativo. Numa sociedade em que à mulher, nega-se até mesmo o direito de se encontrar, quando isso ocorre e o abismo entre os gêneros diminui, não há espaço para o homem.



