
[30º É Tudo Verdade] Hora do Recreio
Este texto faz parte da cobertura do 30º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade, que ocorre entre 03 e 13 de abril.
“Vocês acham que isso aqui é realidade ou ficção?”, pergunta a professora depois de uma interação bem intensa com um grupo de alunos adolescentes. Até esse momento, em que a pergunta revela também a participação da equipe de filmagens em cena, a pessoa espectadora não tinha motivos para fazer o mesmo questionamento. Abrir o plano para revelar o aparato cinematográfico, bem como a diretora Lúcia Murat, não é exatamente um recurso que atravessa a linha entre o documentário e a obra ficcional, mas é inserido de forma a quebrar o fluxo bastante denso dos relatos, e sublinhar as dificuldades de produção que foram enfrentadas. Hora do Recreio seleciona três grupos de jovens, do ensino fundamental ao médio, focando-se principalmente no recorte social e racial, adolescentes negros da periferia do Rio de Janeiro, para discutir em blocos os assuntos que atravessam suas vivências.
O faz, no entanto, sempre reforçando um vínculo com a encenação, de modo que a arte seja tanto forma de expressão dos personagens, quanto recurso para realizar o documentário, ultrapassando a proibição governamental de filmar dentro das escolas. Murat abre seu longa dedicando bastante tempo ao rap de Djonga e Coyote Beatz, quase elaborando um videoclipe em que as imagens de muitos alunos uniformizados nas ruas cariocas são colocadas em paralelo a uma exibição artística de pinturas que retratam pessoas semelhantes. A arte representando pessoas negras e da periferia, parece ser um dos grandes objetivos da Hora do Recreio.
No entanto, a divisão em três partes demonstra uma construção frágil e a mesma imaturidade ao lidar com temas importantes que a diretora já mostrou anteriormente, inclusive no bastante fraco O Mensageiro. Essa impressão não é de forma alguma imediata, toda a primeira parte do filme, incluindo essa introdução musical, é uma nota forte, o que também inevitavelmente prejudica o restante, ao soar cada vez mais abandonada pelo restante da abordagem.
Na primeira escola, Murat revela suas dificuldades para filmar a realidade dentro das instituições de ensino, sendo assim levada a selecionar alunos (dá a entender que é um grupo que também faz teatro) para reconstruir uma ideia de sala de aula. A professora, também escolhida para as cenas, levanta pautas como a violência contra a mulher e o racismo, resultando em debates poderosos entre os alunos que desabafam livremente sobre suas experiências particulares, acrescentando sexualidade, gênero e outros temas. Assim, ainda que o longa trabalhe em uma realidade extremamente controlada, evitando em grande parte o acaso, as falas intensas dos jovens elevam o resultado, permitindo que eles mesmos conduzam a narrativa. São momentos de pura escuta, com a professora como mediadora, em que quem assiste é transportado imediatamente para a emoção, à dor, mas também à vivacidade da adolescência. A empatia é quase obrigatória, sem convites, nem rodeios.
Ocorre que, ao iniciar dessa forma, Hora do Recreio engata algo que se transforma e não aproveita o potencial no qual mergulhou. Na segunda parte, mais uma vez, Murat divide em cena as dificuldades de produção. A segunda escola desmarca duas vezes as gravações por conta de tiroteios na comunidade, então, a cineasta resolve abraçar o problema e o tornar parte da obra, trazendo para dentro as vozes e imagens das periferias que são afetadas pela violência das ações policiais. Em paralelo, a arte entra novamente, com encenações de jovens que dançam e performam. Ao invés de partilhar com palavras, usam seus corpos para se expressarem. O tom é diferente da primeira parte, o debate ainda segue as mesmas questões, mas a condução dos adolescentes é perdida.
Essa ruptura soa como se as partes, ainda que com suas ligações, fossem desconexas e independentes, como filmes menores que se unem por uma temática geral. Murat tem dificuldade em organizar tudo dentro de uma mesma linha e tenta trazer tanto a diversidade de assuntos que atravessam as pessoas negras, principalmente da periferia carioca, quanto uma variedade de perspectivas, seja do documentário mais tradicional, escutando seus personagens, quanto trazendo outras expressões artísticas em tela. A divisão em blocos, que delimita muito bem em que ponto cada abordagem começa e termina, é fator fundamental para marcar a irregularidade, pois não há transição que ajude a misturar os três capítulos.
A terceira parte, e escola, é certamente a que mais destoa do restante e parece a que mais dura em tela. Por ser a última, a nota final com que Murat encerra Hora do Recreio é a impressão mais fácil de permanecer com a pessoa espectadora. No entanto, poderia ser uma obra independente, que usa um dispositivo muito diferente para discutir, em tese, as mesmas questões. Os alunos, em sua maioria alunas, que fazem parte da última escola, pouco são vistos na dinâmica de uma sala de aula. O filme opta pelo teatro para que as pautas venham à tona. Ao encenar Clara dos Anjos, de Lima Barreto, racismo e violência contra a mulher retornam para o centro, mas também o embate entre a geração atual e uma sociedade do passado, que enxergava essas questões de forma muito diferente.
Neste momento, o controle de cena que o documentário possui por não filmar livremente a realidade, mas construir encenações, torna os diálogos menos orgânicos que os da primeira parte, o que reforça também como Murat ainda tem dificuldade de discutir temas importantes sem soar, por vezes, como um texto pronto e simplista retirado da internet. A juventude que estampa as telas ajuda nesse ponto, já que seriam as meninas, e alguns poucos garotos, a discutir de suas maneiras ainda muito jovens o que é proposto, mas a mesma ideia é muito mais complexa e intensa com o primeiro grupo, também por parecer menos engessado. O grupo de teatro traz a energia, porém, é como se o roteiro adaptado do livro não fosse o único que guia suas interações em cena.
Em três partes, nenhuma soa ruim, na verdade todas tem ótimas qualidades individualmente, mas ao as unir dessa forma, Hora do Recreio fica com peças deslocadas, sem mergulhar de fato no potencial que cada uma carrega. Os temas atemporais, discutidos episodicamente, emperram uma progressão e, devido a escolha de abordagem, também tem momentos em que são atropelados por uma modernidade que existe apenas na forma, mas não é aplicada em contexto. Então a bagunça aparece em vários cantos, a execução enfraquece o resultado e sobram as ótimas intenções de Murat, com muita sensibilidade com seus personagens, em colocar jovens negros para se expressarem artística e verbalmente e discutirem por eles mesmos as dificuldades que enfrentam na sociedade.



