
[30º É Tudo Verdade] Ritas
Este texto faz parte da cobertura do 30º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade, que ocorre entre 03 e 13 de abril.
Na noite de abertura do festival É Tudo Verdade, em São Paulo, a Cinemateca Brasileira estava lotada de pessoas esperando para ver Ritas, longa de Oswaldo Santana e codirigido por Karen Harley. Como uma ironia do destino, a chuva começou a cair na cidade da garoa no mesmíssimo segundo em que a tela externa, ao ar livre, dava seus primeiros sinais do filme. O público, que esperava há quase duas horas para a sessão iniciar, se movimentou com as cadeiras para os cantos cobertos. Algumas pessoas se apertavam em pé abaixo da sala de projeção, outras encaravam a água, ainda leve. Ninguém desistiu de Ritas, mesmo quando a situação piorou bastante, e quase no fim do documentário, centenas de pessoas foram presenteadas com uma cena de arquivo em que Rita Lee, em um show de aniversário da cidade de São Paulo, perguntava à multidão se estava todo mundo bem com a chuva. Na área descoberta da Cinemateca, todos riram, era como se Rita soubesse e comandasse pessoalmente o show da primeira exibição de um filme sobre si mesma, brincando com seus fãs.
Essa descrição do clima da sessão tem tudo a ver com o próprio documentário, que não pretende pura e simplesmente contar a história e vida de uma das mulheres mais marcantes na cultura brasileira, muito menos usar outra voz que não a dela mesma. Misturando imagens de arquivo de toda sua carreira, shows, entrevistas e outras aparições, com filmagens pelas mãos de Rita e uma última entrevista inédita, feita especialmente para o longa antes de seu falecimento em maio de 2023, a obra tem como recurso fundamental a narração da protagonista e suas interações diretas. É como se ela mesma contasse sua história, com seu jeitinho tão único e inesquecível.
Não poderia ser diferente, Rita Lee foi muitas mulheres, pessoas, personagens, teve tantas atuações quanto e, para retratar alguém tão especial e diferente, seria difícil trazer outra perspectiva que não caminhasse junto de sua própria. O trabalho de Oswaldo e Karen não é de desvendar a figura da roqueira, mas de estampar o filme com sua personalidade, andando entre a manutenção do mistério e a aproximação pessoal. O resultado é um deleite para os admiradores e um convite a se apaixonar para os menos íntimos. O uso da palavra “estampar” é bem-vindo, de modo que as imagens do documentário buscam a inspiração artística de sua musa, ao pintar e ilustrar seus relatos, transformar suas fotos e cenas, trazendo cores, formas, caleidoscópios e outras viagens visuais. Não é o filme mais distante possível do formato documental padrão, mas destaca-se por esforços como esses de traduzir na linguagem a pessoa que é centro da narrativa.
A personalidade de Rita é um prato cheio para divertir quem assiste, e a montagem de Ritas, feita também pelo diretor, sabe aproveitar essas deixas. Ainda que siga uma certa linearidade dos acontecimentos, o longa não assume uma obrigação de relatar os fatos conforme se deram, permite um fluxo mais livre e, principalmente, dá espaço de sobra para que as músicas existam em cena. Além da narração da protagonista, tão vivaz que não soa como um último registro, são as canções que ajudam a traçar a narrativa e, sendo criações tão intimamente ligadas à persona de Rita Lee, Oswaldo é muito sábio de deixar que elas respirem nas cenas e incitem uma cantoria ou outra na audiência.
Do riso com a personalidade e sagacidade de Rita, e também de seus relatos bastante peculiares, passando por conhecer mais de perto seus interesses além da música, na intimidade com seus animais e objetos, sobra muito lugar para a emoção que vem ao chegar mais perto de seu companheirismo com Roberto de Carvalho e por como a saudade dessa grande figura se torna palpável ao longo da obra. Mas Ritas é a cara de Lee e, sendo assim, não poderia se deixar levar por uma bad trip, é sempre positivo e alto astral, como deveria ser.



