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[44ª Mostra de São Paulo] Mosquito

Esta crítica faz parte da cobertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 22 de outubro e 4 de novembro em formato online.

A Europa está sob os holofotes durante a 1ª Guerra Mundial , mas na África, embora o conflito seja menos discutido (inclusive em obras cinematográficas), ele também se desenrola. O soldado Zacarias (João Nunes Monteiro), português de apenas 17 anos, desembarca em Moçambique para, junto com seus colegas, tentar evitar que as tropas alemãs ocupem e se apropriem daquele território. Só quem pode apropriá-lo é Portugal. Com roteiro de Fernanda Polacow e Gonçalo Waddington, Mosquito, dirigido por João Nuno Pinto, propõe uma interessante reflexão sobre as relações e desdobramentos entre guerra e colonialismo.

O jovem, infectado com malária, é deixado para trás por sua tropa, para que, ao se recuperar, os reencontre com uma caminhada de cinco dias. Todas as interações com os povos locais demonstram que, apesar de ele ser da mais baixa patente no exército, ainda há outra hierarquia em vigor, baseada em raça e etnia. Homens negros pegam suas roupas sujas, servem os jantares, carregam seus pertences e realizam outras tarefas cotidianas. Quando se acrescenta a camada de gênero, a realidade piora, basta ver as falas do sargento, que também diz “somos o leão, que quando ruge, os outros calam”, afirmação que ressoará na cena final.

Toda a jornada do soldado é permeada por delírios coloniais. Os dias nas savanas, as noites que têm um quê de surreal, flertando com Apocalypse Now. Nesse processo ele desconhece que pessoas negras podem ser de etnias diferentes e não está inteirado sobre processos de escarificação. Ele se vê só, mata, encontra pessoas, presencia ritos. De sua masculinidade heterossexual branca, fantasia sexo que se transfigura em horror quando sai do seu domínio. A bela fotografia de Adolpho Veloso merece ser destacada, ao capturar as imagens (e sua instabilidade), muitas vezes sob a luz tremeluzente do fogo e sempre com composições vistosas.

O olhar de Zacarias nunca deixa totalmente de ser um olhar colonizador e outros personagens são sempre reféns desse processo. Entre acontecimentos e miragens, ele sempre enxerga o outro, distante, exótico, servil, agressivo, sexual. Só consegue se ver como um igual no suposto inimigo, um alemão, branco como ele. O antagonismo inicial cede lugar a identificação. E é assim que, acontecimento por acontecimento, ele constata a barbárie da guerra sem fazer o mesmo com o processo colonial. E na brutalidade de seus colegas enxerga a monstruosidade, quando ele mesmo sujou as mãos de sangue. Quem é o leão?

A jornada de Zacarias é marcada por delírios de colonialismo que se dissolvem na loucura da febre. A direção firme de João Nuno Pinto nos conduz por suas incoerências e Mosquito explicita as contradições do personagem, que se enoja com a violência, mas toma parte nela, como uma engrenagem ativa da brutalidade imperialista.

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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