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Diário de uma filmografia: Julia Roberts

Dia dos Namorados chegando e com ele uma jovem tradição do Feito por Elas: um episódio sobre comédias românticas. Majoritariamente brancas e heteronormativas, o gênero tem uma infinidade de filmes repetitivos e pouco inspirados. Ainda assim tem exemplares deliciosos, que vão das comédias malucas da Hollywood clássica ao texto afiado de Nora Ephron. Em 2017 começamos com a própria Nora Ephron e a ela se seguiu a Nancy Meyers no ano seguinte, ambas roteiristas e diretoras estabelecidas no gênero. Em 2019 resolvemos falar sobre uma atriz: Sandra Bullock, uma das queridinhas dos romances da década de 1990. E veio a promessa: em 2020 seria a vez de Julia Roberts, que reinou na mesma década. Com 52 anos de idade, 4 indicações ao Oscar e uma estatueta na prateleira, a atriz coleciona filmes memoráveis. O programa vai ser exclusivamente sobre Uma Linda Mulher (Pretty Woman, 1990), filme que a alçou ao estrelato, mas eu pensei “por que não tentar ver o máximo de filmes possíveis de sua filmografia em ordem cronológica?”. Pois bem, esse é o relato dessa experiência. Foquei em filmes que não havia visto ainda ou que vi há muito tempo e não lembrava mais em detalhes; e que sejam romances, tanto dramas quanto comédias. Os comentários não são especificamente críticas sobre os filmes, mas a descrição das minhas impressões diante deles. Um aspecto que me chamou atenção foi a percepção que boa parte das personagens da atriz são mulheres comuns, all american girl, que têm vidas e trabalhos próximos daqueles das pessoas que assistem aos filmes. Julia Roberts construiu uma filmografia e uma carreira como uma mulher acessível, ainda que a qualidade dos filmes que estrelou varie muito, como você lerá a seguir.

Três Mulheres, Três Amores (Mystic Pizza, 1988), dir Donald Petrie

O título em português resume bem: são três jovens mulheres que trabalham na mesma pizzaria familiar e os romances em que cada uma se envolve. Eu lembrava vagamente de ter visto esse filme no SBT, no Cinema em Casa, mas não tinha lembrança nenhuma sobre ele. É um começo promissor pra uma revisão de carreira e o primeiro filme que Julia Roberts tem um papel de protagonista. Muito jovem, ela divide os holofotes com Annabeth Gish, que interpreta Kat e tem uma história bastante desconfortável que envolve o romance com um professor universitário para quem ela trabalha como babá dos filhos, na ausência da esposa dele; e Lili Taylor, que vive Jojo , uma jovem abandona o noivo no altar logo no início do filme. A personagem de Roberts, Daisy, por sua vez, se apaixona por um rapaz granfino que mais fetichiza sua “liberdade” de classe trabalhadora do que qualquer outra coisa. Existe maior ou menor grau de insucesso nesses romances, mas a dinâmica de relacionamento entre as mulheres é muito boa. Curiosamente elas são de família portuguesa e em determinada cena Gish Taylor canta “nana, neném”, com um puxado sotaque estadunidense na pronúncia.

★★★ e Selo Bechdel

Flores de Aço (Steel Magnolias, 1989), dir. Herbert Ross

Eu já tinha ouvido falar desse filme como um clássico do cafona, mas não me recordo de ter assistido a ele antes. Do sotaque português, Roberts pula para o sulista e garante sua primeira indicação ao Oscar, como atriz coadjuvante. Shelby é uma jovem mulher que vai se casar e resolve ter um filho, apesar do posicionamento contrário dos médicos, devido a suas complicações de saúde. A delícia desse filme são os encontros entre mulheres e suas conversas. Existe apoio mútuo e uma ou outra rusga, tudo isso com muito laquê e cabelos volumosos, já que muitos desses encontros são em torno do salão de beleza. Olha o elenco: Sally Field é M’Lynn, mãe de Shelby, Dolly Parton é Truvy, a cabeleireira amiga das duas, que por sua ver acolhe Annelle, novata na cidade que fugiu de um casamento violento, vivida por Daryl Hannah. Olympia Dukakis interpreta Clairee, a ex-primeira dama que sabe tudo que acontece na cidade e Shirley MacLaine é Ouiser, uma senhora excêntrica e durona. Seis mulheres que, ainda que um tanto quanto arquetípicas, têm suas próprias histórias e um desenvolvimento na narrativa. Não é um filme perfeito, mas é uma delícia de assistir.

★★★½ e Selo Bechdel

Tudo por Amor (Dying Young, 1991), dir. Joel Schumacher

Direção de Joel Schumacher, música tema cafoníssima de Kenny G e uma história de relacionamento com um cara abusivo, controlador e chantagista que se tenta vender como romance. Esse filme foi prometido como a melhor bilheteria daquele verão e flopou. É fácil entender. Roberts interpreta Hillary O’Neill, uma cuidadora contratada por Victor (Campbell Scott) especificamente porque era a candidata mais bonita. O rapaz tem com câncer e queria a possibilidade de um romance antes de morrer. Os dois se mudam para uma cabana afastada e , surpresa!, o romance realmente acontece. Ele tenta educá-la porque não a considera cultivada o suficiente, ele despreza os conhecimentos dela de coisas populares, como programas de televisão e, por fim, ele é absolutamente obcecado com o fato de ela CONVERSAR com o vizinho. Um filme de romance não deveria fazer quem o assiste torcer pro galã morrer mais rápido. Só tem uma coisa boa: o permanente da Julinha.

Dormindo com o Inimigo (Sleeping With the Enemy, 1991), dir. Joseph Ruben

Mais um sucesso que eu nunca tinha visto… e também não perdi muita coisa. Eu tinha seis anos quando ele foi lançado e lembro de ser um filme muito comentado. A história é óbvia pelo título: Roberts vive Laura, uma mulher que sofre violência doméstica. O marido, Martin (Patrick Bergin) exige toalhas impecavelmente alinhadas, despensa milimetricamente ordenada, ela sempre bonita, escolhe suas roupas e é um controlador ciumento. Mas tudo é muito caricato, ele é um vilãozão malvado de bigodes, o que não abre margem alguma para reflexão sobre tantos casos reais em que o parceiro, na verdade, esconde sua violência no charme cotidiano. Laura cria uma morte falsa para si (que lembra a fuga do recente O Homem Invisível ), arruma uma nova casa gigante de dois andares para morar sozinha em outra cidade e imediatamente começa a se relacionar com outro cara que tem comportamento questionável. O confronto entre ela e o marido só vem nos últimos dez minutos e é tudo muito ruim.

Adoro Problemas (I Love Trouble, 1994), dir. Charles Shyer

Aqui eu comecei a questionar minha decisão de ver todos esses filmes. A diversão começou a se firmar como sofrimento. Julia Roberts é Sabrina Peterson, uma jornalista nova na cidade que escreve no jornal concorrente de Peter Brackett, interpretado por Nick Nolte. A personagem dela é ótima. O roteiro de Nancy Meyers é afiado e os dois se envolvem na investigação de um caso que rende inúmeras matérias de capa. A competição vira colaboração competitiva. Acho que a culpa nem é de Roberts, que faz o possível, mas de um Nolte com o dobro de sua idade e uma atuação desinteressante e sem química. Talvez com outro ator o filme tivesse algum charme a mais e funcionasse como a “guerra de sexos” das comédias malucas que tenta homenagear.

★★

O Segredo de Mary Reilly (Mary Reilly, 1996), dir. Stephen Frears

(Socorro, eu não aguento mais!). Uma atmosfera cinzenta e nublada bastante adequada à ambientação gótica da história. A trilha sonora é ameaçadora e pomposa. E o filme não é muito mais que isso. Dessa vez Julia tenta emular um pavoroso sotaque irlandês enquanto protagoniza a história de Dr. Jekyll e Mr. Hyde sob o ponto de vista da criada da casa. Em um momento Clark Kent, John Malkovich interpreta o médico e o monstro, que se diferenciam apenas pela peruca, mas ninguém percebe. Sobra exagero a ele e faltam expressões faciais a ela. Era para ser uma história de amor.

★★

Teoria da Conspiração (Conspiracy Theory, 1997), dir. Richard Donner

Julinha (a essa altura já estou íntima) dessa vez é Alice Sutton, uma funcionária do governo que é observada de longe por Jerry Fletcher (Mel Gibson). Ele, por sua vez, é um taxista que acredita em mil teorias da conspiração estilo chapéu de papel alumínio. Mas chega uma hora que certas paranoias suas se mostram acertadas. Ela funciona mais como escada para ele, que é realmente o protagonista. Apesar de esquecível, o filme diverte. A tentativa de criar um romance se mostra equivocada na narrativa, uma vez que que é fácil questionar a saúde mental dele e o seu stalking.

★★½


Depois de tanto sofrer, optei por pular O Casamento do Meu Melhor Amigo (My Best’s Friends Wedding, 1997), Os Queridinhos da América (America’s Sweethearts, 2001) e A Mexicana (The Mexican, 2001), filmes vistos há muito tempo e pelos quais nutro pouquíssimo carinho. Também pulei Um Lugar Chamado Notting Hill (Notting Hill, 1999), que é o meu romance preferido dentre todos dela, e que revi há pouco tempo, mas antes de resolver fazer esse experimento. De qualquer forma 5 estrelas e coraçãozinho. Seguindo de forma um pouco mais promissora.


Lado a Lado (Stepmom, 1998), dir. Chris Columbus

Eu não lembrava que já tinha assistido a ele, mas conforme fui vendo, todos os detalhes da história reafloraram na memória. Julia é Isabel, uma fotógrafa que namora com Luke (Ed Harris), que por sua vez é divorciado de Jackie (Susan Sarandon), que é mãe em tempo integral. Morando com ele, ela tem que se acostumar a ser a madrasta de seus dois filhos, Ben (Liam Aiken) e Anna (Jena Malone baby). As crianças são difíceis, mas no fundo um docinho. Jackie a princípio não está nada feliz com a nova namorado do ex, tão mais jovem (e com possibilidade de ser vista como descolada pelas crianças). Então ela descobre que tem um câncer complicado e decide tentar conciliar todos. Sarandon meio que rouba a cena aqui. Mas convenhamos que o tal do Luke é bem babaca, então o relacionamento entre as duas é justamente o que torna o filme bom e mesmo fofo. Duas mulheres tão interessantes perderem tempo um cara desse, meu deus!

★★★½ e Selo Bechdel

Erin Brokovich, uma Mulher de Talento (Erin Brockovich, 2000), dir. Steven Soderbergh

Agora sim! Julia tem espaço e um bom roteiro e direção e com isso conseguiu seu Oscar de Melhor Atriz. A all american girl  por excelência encarna aqui a sua mais american girl de todas. Erin é uma mãe solo de três crianças, está desempregada e arruma um trabalho em um escritório de advocacia. Ela começa a investigar um caso de contaminação de água e isso leva seu chefe a lidar com um processo milionário. Sim, o figurino é caricato e atrapalha um pouco. Mas o resto compensa e Erin funciona como uma ponte entre os empoados advogados e as pessoas comuns, que têm suas vidas afetadas pela situação. Eu tinha visto o filme na época mas não lembrava de muita coisa. Baseado em fatos reais, é uma trama que nos coloca na torcida pela personagem.

★★★★ e Selo Bechdel


Eu nem vou escrever sobre Onze Homens e um Segredo (Ocean’s Eleven, 2001), porque nesse filme Julia Roberts é praticamente uma coadjuvante de luxo, com poucas cenas. Eu só tinha visto esse filme no cinema e pouco lembrava dele além do fato de ser divertido. Revisto, segue a mesma impressão. Agora, juntar Roberts, Brad Pitt e George Clooney em 2001: diga aí que elenco milionário e dos sonhos para a época.


O Sorriso de Mona Lisa (Mona Lisa Smile, 2003), dir. Mike Newell

Lembro que na época que esse filme saiu fiquei desapontada porque ele parece que nunca chega ao ponto que parece querer tocar. A Crítica Social Foda™ fica pelo caminho. Talvez a idade está me deixando mais mole, mas passados 17 anos, embora essa sensação permaneça, alguns aspectos parecem ter se tornado mais interessantes em tempos de retrocesso. Na década de 1950, Julia é Katherine, uma professora de história da arte de uma universidade de elite para garotas que tenta fazê-las se interessas genuinamente pelo tema, para além da necessidade de conhecimentos gerais para as rodas sociais. Suas ações são lidas como ousadas para aquela comunidade, mas ela não está só. Em certo momento conversa com uma professora que foi demitida por fornecer métodos contraceptivos pra alunas. Katherine pergunta a ela se era considerada perigosa para as alunas e recebe a resposta: subversiva. Apesar disso, o comportamento de um professor que assedia alunas é tratado sem muita profundidade na narrativa, como se não tivesse tanta importância. O elenco que interpreta as alunas tem vários dos jovens talentos do começo década de 2000: Kirsten Dunst, Julia Stiles, Maggie Gyllenhaal e Ginnifer Goodwin. Concordo totalmente com a resenha de 🌻 lindsay 🌻 no Letterboxd: sinto que o forte subtexto da sexualidade envolvendo mulheres que se atraem por mulheres é desperdiçado e o fato de o filme tratar de direitos das mulheres (carreira, casamento, família, sexo) usando como recorte apenas garotas ricas e brancas torna tudo bastante superficial. Mas é ele entretem fácil.

★★★ e Selo Bechdel

Closer: Perto Demais (Closer, 2004), dir. Mike Nichols

And so it is… Revi esse filme e estou há 10 dias com a música do Damien Rice na cabeça. Esse filme é brutal. Lembro de tê-lo locado na época do lançamento e chorado copiosamente assistindo. Devo ter revisto uma ou duas vezes depois e nessa revisão a nota caiu meia estrelinha, mas continua mexendo comigo. Um quadrângulo amoroso composto por Anna (Julia Roberts, novamente uma fotógrafa; Larry (Clive Owen), um médico; Dan (Jude Law), um escritor e Alice (Natalie Portman), uma garçonete e stripper. Roberts está ótima, mas sua presença se dilui em uma obra construída nos múltiplos encontros dessas personas. Todos são mais velhos que Alice e é impressionante o pouco cuidado que têm com seus sentimentos: pessoas maduras que magoam uma jovem sem se importar. Na época em que foi lançado eu tinha 19 anos e um crush enorme pela atriz. Hoje olho para sua personagem em cena e me chama atenção justamente sua juventude e vulnerabilidade. O male gaze é absoluto aqui e a câmera parece querer roubar o corpo de Natalie Portman e entregá-lo para quem a assiste. E apesar disso o filme transborda emoção. Os desejos, a oposição entre liberdade e vontade de aprisionar de múltiplas maneiras, as diferentes visões sobre relacionamentos: tudo se mistura em uma explosão melancólica de romances fadados ao insucesso. O que fica é um gosto amargo, que pode ser familiaridade ou de projeção; mas também o testemunho de um encontro simples de grandes atuações: atuações maduras, sob a batuta certa.

★★★★ e Selo Bechdel


Depois disso eu ainda assisti a Um Segredo Entre Nós (Fireflies in the Garden, 2008) e Duplicidade (Duplicity, 2009) antes de desistir de seguir em frente. Mas vou fechar esse diário com Closer , mesmo, para que o final seja otimista.

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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