[57ª Festival de Brasília] Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá
Este texto faz parte da cobertura da 57ª Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, que ocorre entre 30 de novembro e 7 de dezembro.
Luís Kaiowá, o personagem a quem o título Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá se refere, permanece adequadamente ausente na maior parte do filme. Quando tinha 10 anos de idade, ele e seu irmão, 10 anos mais velho, saíram de seu território no Mato Grosso do Sul. Era o período da ditadura militar e, nesse caminho, foram interceptados por administradores da FUNAI, que os deslocaram para as terras dos Maxakali (Tikmũ’ũn), em Minas Gerais. Com casas, línguas, roupas e modos de viver diferentes, foi ali que ele cresceu e onde se casou com Noêmia Maxakali e teve duas filhas: Maiza e Sueli. Luís relato o treinamento militar a que foi submetido e os trabalhos nos campos, conduzindo tratores.
Quando as filhas ainda eram pequenas, o governo militar reconduziu Luís para as terras dos Kaiowá, separando-o de sua família. Quarenta e poucos anos depois, Sueli hoje é uma cineasta, artista visual e professora. Por meio do Facebook, entrou em contato com primas. A comunicadora e antropóloga Tatiane Klein, que trabalha junto aos povos Guarani e Kaiowá, estava nas proximidades da aldeia Laranjeira Nhanderu, onde Luís residia à época. Então entrou em contato com o antropólogo Roberto Romero, que realiza pesquisas com os Maxakali. Tatiane pôde enviar fotos de vídeos de Luís para Sueli, por meio de Roberto. E dessa forma, alguns dias depois, pai e filha se falaram ao telefone pela primeira vez.
Desse reencontro, num primeiro momento apenas por voz, veio o plano de uma viagem para reunir a família. E também surgiu o documentário, dirigido por Sueli Maxakali, Isael Maxakali, Roberto Romero e Luísa Lanna, com direção assistente de Daniela Kaiowá e Michele Kaiowá. O filme apresenta os preparativos de ambos os lados. As conversas incluem longos silêncios que dão conta de expressar a violência vivida e sentida nos anos de ditadura, mas que nunca deixou de se fazer presente em se tratando dos povos indígenas. Conversei com Tatiane Klein, produtora, roteirista e tradutora do filme, com Luísa Lanna, diretora e montadora, e com Sueli Maxakali, diretora, fotógrafa e roteirista, sobre essa realização que, de certa forma, é reflexo de décadas de lutas dos povos indígenas no Brasil mas também uma celebração de suas vidas, costumes e, claro, cinema. Confira as entrevistas a seguir.
Isabel: Conta um pouco sobre qual a tua pesquisa de doutorado e como ela levou (ou te levou) ao filme.
Tatiane Klein: O filme ele nasce da comunicação entre as primas, Sueli Maxakali e Clara Kaiowá. A Clara é uma das minhas interlocutoras de pesquisa. Eu estava morando na aldeia Laranjeira Nhanderu [terra indígena habitada por Guarani, Guarani Kaiowá e Guarani Ñandeva] e acompanhando os rituais feitos pela família dela. Ela é filha de rezadores e sobrinha do seu Luís. Então, durante o meu trabalho de campo, trabalhei numa região que conecta várias aldeias e em que o seu Luís, o pai da Sueli, é uma das grandes referências rituais. Durante a minha pesquisa, eu tava interessada em entender como é que circulam os cantos-rezas, como é que se dão as formas atuais de aprendizagem desses cantos, e como que as tecnologias de comunicação entram nisso. Até porque eu estudei também papel dos comunicadores indígenas, dos cineastas indígenas nessa circulação, nessa perpetuação dos saberes, no mestrado, quando trabalhei com cineastas e comunicadores Kaiowá. No doutorado fui trabalhar com os rezadores, com os anciãos, com pessoas que detêm conhecimentos tradicionais e que se engajam também na produção de registros. E o seu Luís então passou a ser um dos meus interlocutores, por ser o mestre do canto longo que é feito na Festa do Milho Branco [Jerosy Puku]. É um canto que dura mais de 10 horas e que não é todo mundo que sabe cantar, tem um processo de formação. A festa depende desse canto, porque também ele é um canto que propicia que as plantas cresçam bem. Embora, ele seja feito para o milho branco, ele tem um espírito que cuida de todas as plantas cultivadas. Então o seu Luís já era uma das pessoas com quem eu tava aprendendo. No meu primeiro campo, em 2017, ele me pediu que eu levasse uma câmera para filmar e a partir do ano seguinte, então, eu me organizei com colegas pra montar uma pequena equipe e nisso eu já estava trabalhando com a Michele [Kaiowá], né? Então eu e a Michele fizemos juntas um registro do Jeroky Gwasu [Grande Canto] na aldeia da Dani [Kaiowá], que é também uma aldeia que faz essa festa anualmente, a pedido do seu Luís, sem nenhuma finalidade de produção de vídeo. E então foi uma documentação que embora contou com o apoio do LISA [Laboratório de Imagem e Som em Antropologia – USP], os equipamentos do LISA, o apoio de colegas também que vieram de São Paulo pra registrar, não tinha nenhuma finalidade de fazer um filme. Aí o que acontece? Eu já tinha encontrado com a Clara, conversado com a Clara, né? Ela disse que tinha uma prima que é Maxakali, a Sueli, e elas se encontraram na Marcha [Mundial] das Mulheres. Um dia eu fui conversar com o seu Luís, levar umas fotos para ele e ele me falou “eu tô aqui me lembrando das minhas filhas que eu deixei em Teófilo Otoni, duas filhas, a Sueli e a outra Maiza, tinha seis meses”, ele me contou. Eu sou amiga do Robertinho [Roberto Romero], e eu acabei escrevendo para ele, falei “ó, Robertinho. Eu acho que eu achei o pai do Sueli”. Então a gente começou a se comunicar, eu e Robertinho, para trocar vídeos deles de surpresa naquela ocasião. Isso foi em 2019, num outro momento. O Roberto gravou um vídeo da Sueli e da Maiza falando “pai, nós estamos aqui”. Então eu mostrei esse vídeo. Gravei um vídeo de volta pra elas verem o pai e ele começou a se lembrar. Ou seja, essa etapa preparatória de pesquisa que é necessária para fazer um documentário, ela foi feita nas nossas pesquisas de campo, que tanto eu quanto Robertinho estávamos fazendo pesquisa de campo do doutorado na época.
Isabel: Seu trabalho na produção e tradução parece ter sido bastante de mediação. No filme tem uma hora que você é mencionada quando aparece o celular, ou que mencionam que você falou que a Sueli está vindo. Como se deu esses processos de negociação nos bastidores?
Tatiane: Essa minha atuação como pesquisadora me levou a apoiar a escrita do projeto. Na verdade o primeiro projeto que foi submetido para um edital, que foi para o BH Nas Telas. Nós escrevemos um roteiro conjunto, Roberto, Sueli e eu. A partir desse edital, a gente começou também a fazer a produção, a conversa com as comunidades, que eram comunidades em que eu fazia pesquisa, para realizar as filmagens, para consultá-los sobre o desejo de participação, para conversar com seu Luís também. Sobre o caminho que a gente queria fazer, inicialmente o filme previa levar o seu Luís até os Maxakali, pra ele conhecer de novo, ou reconhecer ou visitar de novo seus parentes Maxakali e também trazê-los no Mato Grosso do Sul. Se tratava de um intercâmbio. Isso foi mudando com o tempo, a gente teve a pandemia no meio, o seu Luís também foi ficando mais velho e perdendo vontade de fazer uma viagem tão longa. E a gente inverteu o movimento: a Sueli então decide vir ao Mato Grosso do Sul. Então em todas essas tratativas eu intermediei esse contato. E também convidei Michele e Dani [primas de Sueli], enquanto cineastas com quem eu já trabalhava, enquanto comunicadoras e também interlocutoras da minha pesquisa, né, para participar enquanto parte da equipe. Porque no momento então que o filme começa a se desenhar, surge a ideia, na produção, de termos uma equipe Kaiowá e uma equipe Maxakali. A equipe Kaiowá ela foi composta, ela teve uma etapa de gravação anterior à chegada da Sueli e da Maiza até o território Guarani Kaiowá. E isso contou com a colaboração de muita gente, do seu Ezequiel, que é o pai da Dani, que foi um dos anfitriões, das lideranças da aldeia Guyra Kambi’y, que é essa outra área onde vivem as primas da Sueli, que também se disponibilizaram a receber, ajudar, a reorganizar a festa. Então toda essa articulação foi é feita nesse nessa região, que por acaso é também a região em que eu fiz a pesquisa de campo, né? Então eu ajudei a fazer essa mediação e as conversas com o seu Luís, principalmente. E a gente fez é toda essa comunicação por telefone, que aparece no filme né? Comprar o celular para o seu Luís, a Sueli queria falar com ele e não conseguia, ele estava com um celular velho. Estava casado com uma esposa nova que não deixava ele atender. Então vamos lá comprar um celular para o seu Luís. E a produção também envolveu toda essa logística da viagem. E a tradução foi uma outra etapa, na verdade. A gente fez essa opção por gravar a parte Kaiowá em Kaiowá, a Maxakali em Maxakali e então envolver tradutores Guarani Kaiowá e tradutores Maxakali na produção das legendas. Depois que o filme foi gravado a gente teve várias etapas de tradução. Na verdade a realização desse filme se amarra muito com essas redes de pesquisa que são tecidas na aliança tanto da Sueli e dos Maxakali com o Robertinho, mas também dessas comunidades Guarani Kaiowá, e dessas comunicadoras, dessa diretoras, Dani, Michele e das Comunidades ali, do próprio senhor Luís com a minha pesquisa.
Isabel: Foi seu primeiro trabalho em um longa-metragem? Como foi a experiência? E como foi conhecer a Sueli, trabalhar com ela e os demais cineastas?
Tatiane: Eu acho que tem algo que é novo de fato que é trabalhar com a indústria do cinema, com a lógica de uma produção grande, que demorou bastante tempo, mas que na verdade não se diferencia tanto de um tipo de atuação que eu já tenho, que envolve a produção audiovisual. A gente tem feito outras produções audiovisuais, que não são longas de cinema, mas são vídeos pra internet que estão circulando por festivais. Acho que a minha trajetória também como jornalista que vai para antropologia me permite fazer essa ponte com um pouco mais de tranquilidade do que talvez outros antropólogos. Acho que toda a minha pesquisa acaba sendo um pouco atravessada por essas experiências de comunicação e o cinema é mais uma. Então ter esse contato com o cinema Maxakali e poder conectar, por meio da pesquisa, o cinema das mulheres Kaiowá, acho que é algo muito potente. Cada uma tem o seu estilo, como que Dani e Michele tem um estilo, bastante diferente do estilo de filmagem de Isael e Sueli, mas que dialogou muito bem. A equipe Kaiowá também, quando a gente fez a captação, a gente trabalhou com a Luísa [Lanna] como diretora, eu na produção e Dani e Michele na direção de fotografia. E aí também vem com os jovens, a comunidade ali envolvida. Então a gente criou uma sinergia muito legal de produção dessas cenas, de captação, que eu acho que é propiciada por essa experiência também na comunicação. Quando os Maxakali chegaram, eles vieram com a equipe completa, a gente teve mais uma câmera, mais um som, então foi uma experiência de bastante aprendizado nesse sentido também. Mas que de uma certa forma tá um pouco conectada com o tipo de Antropologia que eu faço. Embora, eu não seja da Antropologia do Cinema, sempre estive mais conectada com as pautas de comunicação. De uma certa forma, eu acho que a minha experiência vem muito dessa produção colaborativa, comunitária, que passa pela produção de livros, passa pela produção de vídeos, de materiais didáticos. A minha aliança é meu trabalho com os Guarani Kaiowá, tem muita essa conexão. E eu acho que isso é uma marca dos cinemas indígenas também, de vários cinemas indígenas e do cinema que é feito pelos Guarani Kaiowá, que na verdade tem múltiplos atores. São produções que derivam dessas alianças e dessas experiências que são comunitárias. Uma experiência que é calcada nessas oficinas comunitárias, nesses projetos comunitários em que o cinema não está desvinculado da retomada da terra, ele não tá desvinculada da luta pelo direito à educação diferencia de qualidade, ele não tá desvinculado da luta por uma existência digna. Então todos nós, de uma certa forma, estamos fazendo isso nesse filme, mais conectado aos projetos de futuro dos Maxakali e dos Guarani Kaiowá do que a simplesmente mais uma produção. E principalmente eu tô lembrando aqui muito do seu Luís, que é uma pessoa que em vários momento, embora no filme tenha oferecido resistência de contar essa história, que é muito triste, da ditadura, que ele sofreu, ele é um grande interessado no registro, na produção audiovisual a partir dos saberes Guarani Kaiowá, é um fomentador desses registros. Ele pede para as pessoas gravarem para que se deixe uma recordação. E esse modo de gravar um canto, de guardar imagens de alguém, embora esse não seja o modo adequado de transmitir conhecimento na avaliação do Guarani Kaiowá. Então é uma aposta nessa aliança com outras tecnologias, com outras formas de circular conhecimento o que esses conhecedores estão fazendo. É uma aposta também na força dessa juventude que está engajada com essas tecnologias e a partir delas também se reconectam com esses saberes de um modo singular.
Isabel: Você trabalhou com Sueli anteriormente. Como foi a conversa e como você entrou nesse projeto?
Luísa Lanna: Bom, em 2017, a convite do Roberto, eu fui convidada para montar o material do filme Yãmĩyhex: As Mulheres-Espírito, a partir de uma oficina de filmagem, Sueli e Isael tinham gravado esse material do ritual das Yãmĩyhex. Quando chegou o momento de fazer a montagem do material, o Roberto me convidou e eu fui para a Aldeia Verde. Aí foi a primeira vez em território Maxakali, e começamos a trabalhar juntas na tradução do filme. A gente traduziu o material bruto, eu, Sueli e a Maíza, a irmã dela, e aí começou essa parceria. A partir daí, pouco tempo depois disso, surgiu essa ideia do filme dO Meu Pai, Kaiowá. Começaram as conversas. E desde o início eu já tava bem próxima. Eu e o Roberto, a gente trabalhava junto na associação Filmes de Quintal lá em Belo Horizonte, que promove o Fórumdoc [festival de filme documentário e etnográfico], no qual eu trabalhei por muitos anos também. E esse projeto, Roberto me chamou para perto. Quando tava escrevendo, me contou a história e falou “vamos escrever esse filme, vamos estar junto nessa”. E aí a partir daí eu fui me envolvendo muito no projeto e antes mesmo da gente conseguir financiamento, ficou estabelecido que seria uma co-direção. Foi feito esse convite para fazermos essa co-direção, que inicialmente era eu, o Roberto e a Sueli, e posteriormente, enquanto o filme tava sendo gravado, o Isael foi tendo também protagonismo nas filmagens, no pensamento do filme, e compôs junto, conosco, esse quarteto aí dessa co-direção. Antes disso eu já trabalhava no Guaiviry, que é uma retomada Guarani, Kaiowá próxima ali da fronteira com Paraguai, onde eu trabalho há 8 anos já coma professora de cinema, junto um coletivo de cineastas lá que se chama Guahu’i Guyra, do qual eu faço parte. Então antes dessas parcerias todas eu vinha dessa trajetória como oficineira e educadora nas aldeias, pela Filmes de Quintal e também pelo Vídeo nas Aldeias. Mas também de forma independente por projetos independentes, principalmente nessa retomada, que é onde eu tenho desenvolvido um trabalho mais contínuo junto com esse coletivo lá. Então esse convite para participar do filme, co-dirigir o filme, ele também vem um pouco dessa experiência já com cinema feito pelos Kaiowá e Guarani no Mato Grosso do Sul.
Isabel: Sobre as escolhas estéticas, o filme têm muitos planos longos com câmera parada, mas também é trabalhado a câmera na mão. Como foi o planejamento das filmagens e das formas de compor as imagens?
Luísa: Aquele plano inicial do filme, ele foi, de fato, um dos primeiros planos filmados, durante a primeira etapa, em que a gente foi gravar, antes mesmo de se confirmar a viagem. Então foi uma etapa que foi filmada só na Aldeia-Escola-Floresta e que meio é o material ali daquele começo do filme. Quando a gente filmou aquele primeiro plano, em que a gente reproduz a foto de família, todos nós ficamos muito felizes com o resultado. E aí de alguma forma, ele acabou inaugurando também essa proposta, que a gente foi reproduzindo ao longo das filmagens, desse plano fixo que vai sendo povoado pelo fora de campo, que tá todo momento presente, seja pelas falas dos mais velhos, pela imaginação que vem a partir da fala e das descrições que são colocadas em cena pelos personagens entrevistados, seja pelos planos fixos mais, vamos dizer assim, performáticos como esse primeiro plano, em que o fora de campo vai invadindo e povoando o plano, entrando e saindo. E um outro plano emblemático, que eu acho que traduz bem essa ideia é aquele da placa em que passam os bois né? E a câmera na mão era meio o óbvio, assim. Não óbvio no mau sentido, mas o que a gente sabia que iria acontecer, que já fazia parte do filme, não só pela prática de Isael e Sueli de já filmar, de já fazerem os outros filmes com muita câmera na mão, né? Todos os outros filmes são praticamente o tempo todo com câmera na mão, mas também pela própria natureza do filme, que tem essa essa pulsação desse acompanhar um acontecimento, é muito grande, parecido com os rituais mesmo, né? Então a chegada, o encontro e todas as cenas a partir desse encontro, a gente sabia que seria inevitavelmente com a câmera na mão.
Isabel: Conta um pouco sobre a montagem também?
Luísa: Na montagem a gente priorizou principalmente dois movimentos que eu acredito que são lições das histórias, das narrativas indígenas para o cinema. Um deles é priorizar a coexistência de várias versões, sem nunca estar procurando ou nunca indicar uma procura por uma versão considerada verdadeira sobre determinada história. Se no caso dessa história do seu Luís, a gente viu que pipocavam versões sobre a ida e o retorno dele. E a gente priorizou por não fazer um filme que tentava reconstituir os fatos, mas que passava batido, mesmo, por essa tentativa de reconstituir os fatos. Mas um filme que se deixava, se contentava com as versões, que acho que são muito mais ricas do que qualquer tentativa que seria, com certeza, frustrada, de tentar, com a montagem e picotando as falas, picotando as informações que são passadas, para tentar reconstituir qualquer tipo de narrativa única sobre o que se passou com o seu Luís nessa é ida para os Maxakali e no retorno para casa. O segundo ponto e a segunda lição é que em uma hora você não faz nada, como diz o personagem Ezequiel, na cena em que eles estão na fogueira já ao entardecer, conversando com as diretoras assistentes, Daniela Kaiowá e Michele Kaiowá. O filme ele prioriza a montagem, né, prioriza a duração dos planos e a coerência interna das falas dos personagens respeitando a criatividade de suas formas de elaboração e expressão. Então eu acho que com isso a montagem tem uma certa didática interna, que ensina no próprio filme o espectador a ver o filme. Eu acho que o filme vai aos poucos ensinando o espectador a ver o filme a partir desses recursos da montagem, de forma que, a partir de um momento, quem embarcou embarca nessas narrativas que podem parecer diferentes ou com um ritmo diferente para o público não indígena, mas que são tão enriquecedoras.
Isabel: Antes de tudo, como foi a sensação quando você descobriu a localização do seu pai e poder entrar e contato com ele e como você teve a ideia de transformar essa história em um filme?
Sueli Maxakali: Foi muito emocionante, eu chorei muito! Foi uma carta que a Clara mandou para uma Maxakali, só que ela não entregou, nesse tempo nós tínhamos saído, nós fizemos a retomada [se refere a retomada do território Maxakali, que ocorreu em 2021, quando estabeleceram o Aldeia-Escola-Floresta]. Aí ela não quis entregar essa carta. Mas aí teve um amigo nosso que tirou fotos [do meu pai] escondido. Ele não era indígena, ele era da Saúde indígena, aí ele tirou foto escondido e me mandou essa carta. E na carta tava o telefone da Clara e de Marlene [suas primas]. Aí quando eu peguei o telefone, nós ligamos para a Clara e para Marlene. Tinha também a todos os endereços. Aí eu chorei muito porque eu queria conversar com meu pai. Quando ela mandou o telefone do meu pai, quando eu ligava para meu pai, tinha uma pessoa que não atendia o telefone, não queria que eu conversasse com meu pai. Só que nesse meio tempo tinha esse antropólogo que é o Robertinho [Roberto Romero], né? E a Tatiane [Klein] também era antropóloga lá [nos Kaiowá] e começou a intermediar. Meu pai começou a atender meu telefone, mas meu pai mudava de lugar e aí eu não conseguia falar com ele diretamente. Era uma enteada dele que conversava com a gente e passava o telefone para ele conversar com a gente. Até que a Tatiane levou um telefone para ele poder conversar com a gente. Eu pedi à Tatiane para comprar um telefone para ele. Foi assim. A nossa emoção, de eu conversar agora com meu pai diretamente foi mais fácil agora, depois do celular que a gente mandou para ele. Aí eu pensei de fazer um filme porque eu queria mostrar a verdade. E eu não tinha recurso também, eu tinha o dinheiro só mesmo pra despesa, não tinha com eu ir lá ver meu pai. Aí o Robertinho, que ficou um tempo com a gente, aprendeu nossa língua… Aí, ele falou assim “Sueli eu vou te ajudar, eu vou te ajudar, vou concorrer em um edital, para você poder ir lá ver seu pai”. Aí foi assim que aconteceu. Aí quando nós ganhamos o edital, foi aí que eu falei assim “agora eu vou ver meu… vou lá encontrar com meu pai’. E aí que foi mais emoção. E aí a gente teve que adiar duas vezes por causa da retomada também, né? Nós tivemos que remarcar. E aí a minha emoção começou a falar mais alto.
Isabel: Como foi pra você abordar essa história pessoal e se colocar na frente das câmeras e também ao mesmo tempo dividir a direção com outras pessoas?
Sueli: Sim, eu tenha outros filmes, mas dessa vez eu queria a versão do meu povo, a versão do povo Maxakali, para nós conhecermos mais a história e mostrar para o público, mostrar para o Brasil que a mesma luta do povo Guarani é do povo Maxakali. O sofrimento né. Eu queria que meu povo falasse. Também porque quando eu cresci, eu só via o trator velho que o pessoal falava que meu pai trabalhava, nesse trator que os policiais colocaram o meu pai, para meu pai trabalhar nesse trator velho que tava lá. E o lugar do presídio também, que tinha uma casa que era um presídio. Quando eu era criança, eu vi o presídio onde se prendia os Maxakali e os parentes que eles levavam também.
Isabel: Esse foi o primeiro festival onde o filme foi exibido. Quais suas expectativas para ele?
Sueli: Nossa! Dá muita força o festival, dá continuidade para nosso povo, para mostrar a verdade, mostrar coisas coletivas, o filme, o cotidiano, né? Não só esse filme, Yõg Ãtak, mas mostrar outros filmes também. E que esse festival seja uma força do nossos Encantados para mostrar. Que nem o filme do nosso Pajé forte quilombola que foi passado [Refere-se ao filme Confluências, sobre Nego Bispo, exibido no mesmo dia]. Um mestre, né? Eu estive do lado também do Velho Bispo dando palestra, ali foi emoção pra mim. Eu estive duas vezes com ele dando palestra na mesma mesa. E espero que o Festival dê mais continuidade a esse lugar. Porque é um lugar… A gente tinha essa esperança de um dia, o sonho nosso de, um dia, esse filme, algum filme fosse passado aqui em Brasília. É uma força do nosso ritual coletivo, também, para nós estarmos mostrando a força dos nossos Encantado, porque não é só passar um filme. Porque são nossos Encantados, nossos rituais, que dão essa força para chegar até nessa altura. Também tenho essa esperança de chegar e ser passado em outros lugares, festivais também. Eu também tenho esperança, pro público conhecer meu filme, Yõg Ãtak.
Agradeço ao Festival de Brasília e às entrevistas pela oprtunidade de entrevista, que foi editada visando melhor clareza.
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