A menina estuprada por Polanski
Olá,
Boa parte de vocês já devem me conhecer do podcast Feito por Elas. Em 2019, começo um novo projeto neste site: a coluna Literatura com Elas, um desdobramento do Instagram @literaturacomelas que comecei em janeiro, com o objetivo de incentivar o debate sobre obras literárias escritas por mulheres. Pelo Instagram, faço breves comentários sobre livros de autoras que estou lendo, além de notas sobre escritoras que permanecem invisibilizadas ou pouco conhecidas no percurso da história da literatura. Por aqui na coluna do site, a ideia é expandir o conteúdo do Instagram com textos mais longos e observações mais aprofundadas sobre as obras.
Para a estreia da coluna, escolhi o livro A Menina – Uma Vida à Sombra de Roman Polanski, de Samantha Geimer (Editora Leya). Uma leitura bastante pertinente neste contexto de debate sobre assédio dentro da indústria hollywoodiana e o movimento #MeToo. O livro é a autobiografia de Samantha Geimer, que ficou reconhecida na mídia como a vítima de estupro cometido pelo diretor Roman Polanski, na década de 1970. Morando na França para evitar ser extraditado para os Estados Unidos, Polanski é considerado foragido pela justiça norte-americana.
Com a narrativa em primeira pessoa escrita com auxílio de Judith Newman, Samantha Geimer escreve sobre sua trajetória de vida como criança que cresceu em York, na Pensilvânia, com a mãe aspirante à atriz e o pai adotivo. Incentivada a começar a carreira de modelo aos dez anos, a autora relata o episódio de uma amiga de infância, que foi estuprada por um homem que dizia ser policial. A partir daí, ela começa a refletir sobre a forma como a sociedade norte-americana naturaliza a violência, sobretudo o abuso de mulheres e feminicídio.
Segundo Geimer, o paradigma cultural dos anos 1970 nos Estados Unidos era de incentivar a sexualidade expandida das mulheres, de erotizar os corpos de jovens atrizes no cinema (Brooke Shields em Menina Bonita, Jodie Foster em Taxi Driver) e incentivar narrativas sobre homens de meia-idade em relacionamentos com adolescentes (Manhattan, de Woody Allen) ou incesto com meninas (Chinatown, de Roman Polanski). Neste mesmo período, Polanski era um diretor em ascensão em Hollywood e visto com um homem traumatizado pelo seu passado (escapou de um campo de concentração aos 8 anos e sua esposa grávida Sharon Tate foi brutalmente assassinada por um grupo comandado por Charles Mason). A autora até levanta como hipótese que a juventude extrema como força vital poderia ser o motivo pelo qual Polanski buscasse meninas pré-puberdade, após tantos traumas em sua trajetória. Ele chegou a se relacionar com a atriz Nastassja Kinski, que fez um ensaio fotográfico sensual com ele quando ainda tinha 14 anos.
Após se mudar para Los Angeles com a mãe já divorciada e com um novo companheiro, Samantha tem a oportunidade de conhecer Roman Polanski, que buscava novos rostos de garotas norte-americanas para um ensaio fotográfico para a Vogue. A partir daí, ela relata todos os detalhes do que aconteceu em 10 de março de 1977, quando foi assediada, drogada e estuprada por Polanski, na casa do ator Jack Nicholson, em 10 de março de 1977. Na época, ela tinha apenas 13 anos e Polanski 43.
Polanski foi indiciado por seis acusações: fornecer drogas controladas para uma menor de idade, cometer ato lascivo ou libidinoso, manter relação sexual ilícita, perversão, sodomia e estupro sob uso de drogas. No entanto, o acordo entre promotoria e defesa levou o diretor a ser julgado apenas por relação sexual ilícita, após sua confissão de culpa. Polanski é condenado a 90 dias de prisão, mas só cumpre 42 dias de sentença. Pressionado pela mídia, o juiz Rittenband decide manter a prisão de Polanski por tempo indeterminado. O diretor não compareceu à audiência da sentença e partiu para França para escapar da condenação e não correr risco de extradição para os Estados Unidos.
Já adulta, casada e com três filhos, Samantha Geimer decide romper seu silêncio sobre o caso, quando Polanski é preso na Suíça em 2009. Após nove meses de prisão domiciliar na Suíça, ele não é extraditado para os Estados Unidos e acaba retornando para França, onde ainda permanece. O que é doloroso para Geimer – que inclusive já perdoou publicamente Polanski – é a exploração sensacionalista da mídia sobre o caso por repórteres, fotógrafos e paparazzi, que constantemente a difamavam e à sua mãe. Outro incômodo de Samantha é com relação às falhas do sistema de justiça criminal, que não protege os direitos das vítimas, porque juízes e promotores preferem se beneficiar da fama em casos que envolvem celebridades.
Ainda que eu concorde com os pontos anteriores, nada justifica as tentativas de abrandar a punição de Polanski. Em determinado trecho do livro, Geimer defende a separação entre a vida pessoal do diretor e seu trabalho como artista. Não concordo com tal visão que separa a arte do artista. Tal argumento tem como pressuposto a autonomia da arte, que é um princípio modernista já ultrapassado e que só serve para a legitimação do campo artístico como se estivesse apartado da sociedade. Mesmo com o julgamento, Polanski continua impune, livre para realizar filmes e isto só é possível porque é o artista que está em jogo, dentro de um sistema de legitimação em que ele ainda mantém seus privilégios. Não existe arte autônoma da trajetória de quem a cria, tampouco gênios que merecem ser intocados.
Apoiadores de Polanski o defendem, sem mesmo se perguntar o que aconteceu com a vítima durante todo esse tempo. Tentativa de suicídio, interesse obsessivo pelo sexo na adolescência, síndrome do pânico, insônia, a vergonha pela difamação pública são apenas algumas das consequências que Samantha sofreu. Pontos pouco aprofundados no livro – talvez por Geimer querer preservar sua integridade -, mas que certamente são indícios de como um estupro pode afetar a vida de uma mulher.
P.S.: O livro é ilustrado com algumas fotografias feitas por Polanski durante o ensaio fotográfico com Geimer. Mas o posfácio escrito pelo advogado de Geimer, Larry Silver, explica que Polanski ocultou o negativo original do primeiro rolo usado no ensaio e entregou apenas as fotografias reveladas. O que é possível intuir que parte das imagens jamais vieram a público.
Livro: A Menina – Uma Vida à Sombra de Roman Polanski
Autora: Samantha Geimer
Editora: Leya
Ano: 2013
Páginas: 304
Dicas de outros livros sobre casos de assédio em Hollywood:
Tippi: A Memoir, de Tippi Hedren
Lançado em novembro de 2016 e ainda sem tradução para o português, a autobiografia da atriz Tippi Hedren relata os constantes assédios que ela sofreu de Alfred Hitchcock, durante as filmagens de Os Pássaros e Marnie. A história do abuso de Tippi é narrada no filme de ficção A Garota (2002), telefilme de Julian Jarrold para a HBO.
Coragem, de Rose McGowan
Lançado em português pela editora Harper Collins, a autobiografia da atriz expõe a covardia de diversos agentes da indústria do cinema estadunidense e revela como a cultura do assédio se perpetua em Hollywood. Também revela como foi assediada pelo produtor Harvey Weinstein.
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