Em minha Pele (Dans ma peau, 2002), Marina de Van retoma e explode o conceito de insólito que ensaiou uns anos antes na atuação em Sitcon (1998), do François Ozon. Na introdução com música lounge e tela dividida, objetos como clipes, réguas e tesoura fazem uma contraposição com o mundo pragmático que logo será questionado.
No filme, Esther, vivida pela diretora, sofre um acidente que a desfigura, mas não se abala, volta animada pra festa à luz de velas. Os poros da pele são evidenciados em closes, em carne viva sensível e exposta. O médico ressalta que “não é normal” e pergunta a ela: “Tem certeza que é sua pele mesmo?” E ela parece querer verificar isso, sente necessidade (e um prazer masoquista) de puxar, esticar e se rasgar, mesmo em serviço, e volta para a mesa de trabalho mais criativa e com mais motivação pra escrever. É ela quem consegue uma promoção almejada pela amiga. Quando um grupo de caras babacas tenta jogá-la na piscina, a moça ressentida não a ajuda. Elas acabam por se afastarem, o que permite uma leitura da dificuldade de preservar relações em colegas de hierarquias diferentes.
O braço de Esther – com um relógio sempre presente no punho para lembrar a efemeridade e o cálculo preciso de uma vida de consumo – fica dormente, como um presságio. Ela tem um tique ou mania de arrancar lascas de madeira com as unhas, parte da necessidade agressiva e curiosa que vai tomando conta dela. Num jantar importante da firma, ela diz “sem álcool”, mas logo se rende e não consegue parar de beber vinho, metonímia de sangue – estética ambígua entre morte e vida. Ela chega a ver o próprio braço deslocado do corpo, mas ela precisa (e consegue) lidar em silêncio com a situação bizarra, o reencaixa E NINGUÉM NOTA, porque ELA não é importante, mas sim o autocontrole, o comportamento adequado e o espírito colaborativo, além do modo como ela terá sucesso (ou não). Ela ainda insiste em cutucá-lo com a faca. Talvez essa seja a cena mais impressionante do filme, pela distância do verossímil. O vinho é caríssimo e é um dos elementos burgueses do pacote de luxúria exaltado, ao lado de perfumes e jóias, um foco na fartura elitizada do mundo exterior. Porém ela está apegada à fratura e parece querer entrar em contato com o interior. Ela não come a carne animal rasgada, cortada e banhada em molho vermelho, reluzente no prato de todos (isso sim é visto como normal) – prefere comer a própria carne. É impossível prestar atenção nos negócios discutidos à mesa, os outros soam como os adultos do desenho do Charlie Brown: “bla bla bla”, devolvendo a eles a insignificância que merecem no contexto de tal espetáculo.
Esther mergulha no campo dos fetiches, de símbolos esperados como lingeries e meia calças rasgadas, aos acidentes de carro, como ocorre em Crash (1996), do Cronenberg. O namorado tenta controlá-la: “Você aprendeu sua lição, não vai acontecer novamente”, mas nos olhares dela sentimos que é um caminho sem volta. Ela tranca a porta do banheiro da amiga, o que reforça a falta de um lugar pra ser ela mesma e a faz procurar hotéis para não ser incomodada. O processo dela não é explicado, não há uma preocupação em entender a patologia, ela vivencia com o corpo o conceito e a prática do autocanibalismo. O autodestrutivo é anti produtivo, ainda que ela prove o contrário na súbita ascensão na carreira. Processos subjetivos se tornam monstruosos. Monstro? Ela não chega a perder a humanidade. Ela pode simplesmente levantar e continuar vivendo apesar da catarse, literalmente visceral, ainda que sua imagem de beleza permaneça na memória pela repetição do frame, eternizada na pose de um corpo jovem. Ela quer viver. Ela se ama, ela se beija com carinho. Ela insiste na vida ordinária apesar do alheamento que a estava levando para um caminho auto obsessivo de isolamento e solidão, na relação existencialista e física consigo mesma. O dilema é que para se adequar às expectativas da sociedade é preciso abandonar muito do que se é de verdade. O preço pode ser perder quem você ama, perder conquistas, ou se perder, assim como ela perde a senha do banco e perde o foco ao olhar carrinhos de supermercado.
As telas divididas também fragmentam as imagens finais, talvez assim um pouco menos perturbadoras. Ela bebe latas de Coca-Cola e promete retornar à rotina falando ao celular e digitando no computador toda ensanguentada, o que reforça o contraste com uma esperada normalidade capetalista. Ainda que autodestrutivo, o interesse de Esther é em preservar sua pele, como se fosse couro, o quanto possível: leia-se evitar ou impedir o envelhecimento e a morte. Ela quer se redescobrir e ser refletida por espelhos e lentes de câmeras, enquanto tem um corpo desejável, enquanto se mutila e como se perguntasse: O que eu sou? O que tem dentro de mim?