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Emmanuelle (2024)

Trabalhando como roteirista há muitos anos, em 2021 Audrey Diwan lançou nos cinemas seu segundo filme como diretora, o impactante O Acontecimento (L’événement), adaptado do livro homônimo de Annie Ernaux. O filme chamou atenção para seu trabalho de adaptação do texto original, realizado com muita nuance, o controle da narrativa e a atuação e Anamaria Vartolomei no papel principal. Ele, inclusive, recebeu três prêmios e uma menção no Troféu Alice aqui mesmo no Feito por Elas. Agora a cineasta francesa retorna aos cinemas com Emmanuelle, com a proposta de renovar ou, ainda, ressignificar a personagem de mesmo nome, que já passou por diversas encarnações e que surgiu no filme erótico de 1974, interpretada originalmente por Sylvia Kristel.

Nessa versão Emmanuelle é vivida por Noémie Merlant e trabalha no mundo corporativo, viajando pelo mundo elaborando relatórios de qualidade de hotéis de luxo. Quando o filme começa, ela está em um avião a caminho de Hong Kong, onde deverá entender e reportar porque o hotel administrado por Margot Parson (Naomi Watts) fez a avaliação de sua rede diminuir. No avião, solicita ao serviço de bordo um hidratante labial, que aplica lentamente com os dedos sobre os lábios. Sem trocar palavras, apenas olhares com um homem (Harrison Arevalo), dirige-se ao banheiro e é seguida por ele. Durante a relação sexual que se segue, enquanto ele se entrega ao ato, ela se olha no espelho com o olhar vazio e sem nenhuma expressão de prazer. Essa é a tônica do filme: a nova Emmanuelle busca interações sexuais fortuitas, mas não se encontra nelas.

O figurino de Jürgen Doering constrói um caráter dual da personagem, profissional, e sensual. É possível perceber o uso de tecidos naturais, como seda e algodão, seja em cortes de alfaiataria, que conotam sua posição elevada no mercado de trabalho, seja em vestidos slip, que remetem a camisolas e que caem forma fluida sobre a pele da personagem. Isso faz com os tecidos criem uma imagem tátil, por mais que isso possa parece incoerente: uma sensação de toque sobre a pele desnuda. O predomínio de cores em tons de marrom e ocre criam uma imagem ao mesmo tempo elegante e desinteressante.

Pela maior parte da trama, Emmanuelle veste chemises brancas de frente única, que deixa suas costas livres quase como que com um convite para o toque. Mas a falta de cuidado com o corte faz com que o tecido marque o movimento do corpo onde deveria abraçar e os botões não se assentem da forma correta. Fica a dúvida da intencionalidade, diante da construção de uma imagem de sofisticação da personagem, mas passa a impressão que esse luxo sedutor nem sempre está sob controle quando escrutinizado.

O cenário luxuoso do resort é propício para a exploração sensorial: da comida preparada com esmero, à luz amarela nos ambientes minimalistas, às superfícies brilhantes à piscina à disposição. Mas Emmanuelle não parece se interessar por nada em particular e mesmo os passeios são agendados por obrigação, como se aqueles lugares fossem obrigatórios no roteiro. Ela tem tudo ao seu alcance e não tem interesse particular por nada. Ao mesmo tempo, as interações com Zelda (Chacha Huang), uma mulher local que trabalha como prostituta, que rotineiramente frequenta a piscina em busca de clientela, dão pistas de que mesmo para ela aquilo tudo não necessariamente seria uma rotina: ela não veio desse lugar, ela foi alçada a ela. Então por que essa atitude blasé e fria?

Com Zelda ela consegue criar vínculos. Se por um lado sua masturbação compartilhada é ausente de tesão e de qualquer fagulha que remeta minimamente a um interesse nas próprias sensações do corpo, por outro pelo menos há algum diálogo, nem que seja sobre personagens fictícios. Mas Zelda também é uma espécie de ferramenta e guia, de quem ela se aproxima para tentar se abrir (para si mesma?).

Nesse sentido, o filme parece replicar (e até amplificar) algumas das questões já muito debatidas a respeito de Encontros e Desencontros (Lost in Translation, 2003), de Sofia Coppola. Não é possível deslocar os acontecimentos que envolvem a protagonista para Ásia visando criar um cenário de estranhamento para ela e achar que se passa incólume das questões étnico-raciais que estão postas. Ao criar uma personagem que é uma misteriosa prostituta asiática que guiará a protagonista branca, é impossível ignorar o histórico e imaginário racista do tropo da dragon lady no cinema ocidental, algo que o filme de forma alguma parece querer encarar, uma vez que a subjetividade de Zelda é apenas relacionada à própria Emmanuelle.

De qualquer forma, o fato de Zelda trabalhar como prostituta é significativo nesse universo de corpos comoditizados. Emmanuelle, enquanto trabalhadora que monitora a qualidade desses hotéis, grava monotonicamente áudios com uma lista de itens relacionados à satisfação dos clientes, citando seus parâmetros e critérios para o resultado obtidos. Em certo momento, uma montagem paralela mostra ela fazendo suas abluções, cuidando do rosto e do corpo, ao mesmo tempo em que a equipe de funcionários faz a manutenção do hotel, polindo o corrimão da escada e arrumando todos os detalhes. São todos engrenagens de um mesmo sistema, sendo alugados pelos mesmos donos.

Diwan parecer querer criticar a forma como, afinal, os corpos são cooptados pelo capitalismo e o próprio prazer se torna uma mercadoria. Isso poderia render um filme afiado de ironia, se pensarmos ele mesmo (e seus antecessores) como produtos da indústria cultural. O ambiente artificialmente construído para o entretenimento do hotel de um lado, o sexo fake e plástico do cinema de outro: esse é o comentário? Mas se é, fica na superfície, não se concretizando em uma elaboração mais interessante e privando a pessoa espectadora da possibilidade de qualquer prazer. É significativa que talvez a melhor cena do filme é aquela em que ela narra o sexo no avião: sexo falado em um filme, que poderia ser visual. (O que me faz pensar se sua proposta seria, afinal, “a destruição do prazer como arma política”, “de forma a conceber uma nova linguagem do desejo”, conforme a teórica feminista de cinema Laura Mulvey em seu texto Prazer Visual e Cinema Narrativa, mas aí eu já divago).

E no meio disso tudo, a protagonista resolve que Kei Shinohara (Will Sharpe), um hóspede misterioso, é seu súbito objeto de desejo, quase como uma figura mítica que vai desvendar os caminhos do prazer que pretende alcançar. E nisso se embrenham num jogo de pistas e labirintos em que ela tenta seduzi-lo e ele não está interessado. É praticamente um banho de água fria (movido a heteronormatividade) em qualquer expectativa de que a personagem pudesse ter alguma virada em sua trajetória.

Audrey Diwan claramente quer questionar o lugar do prazer no capitalismo. Quer fazê-lo criticando o papel do cinema e, nesse sentido, descontrói com perspicácia a noção de olhar masculino. Mas ao elaborar essa tentativa por meio da história da personagem em busca de si por meio do sexo sem gozo, (talvez involuntariamente) construiu uma narrativa que é majoritariamente fria, sem estímulos, vazia. É possível que o erro seja usar o nome de uma personagem que carregue tanta história e tanto sentido. A busca por se encontrar pela expressão de sexualidade nos entrega justamente a falta de erotismo, o que parece uma incoerência. O climax (trocadilho intencional) tardio falha em redimir essa jornada. Na crítica ao capitalismo, é significativo que esse momento venha só, justamente, quando ela consegue se libertar das amarras do próprio trabalho. Emmanuelle, o filme e a personagem, se perdem em sensações vazias que não conectam com a audiência, em uma narrativa que não parece elaborar tudo que quer dizer.

Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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