
Entrevista com Marcelo Gomes, diretor de Criaturas da Mente
Reflorestar o imaginário é preciso. Com Criaturas da Mente, o diretor Marcelo Gomes mergulha no mundo dos sonhos. O documentário, que estreou nos cinemas na quinta-feira (8), parte de uma angústia pandêmica do realizador: em 2020, quando o mundo fechava, o inconsciente dele também fazia uma pausa. Matéria-prima da arte, o sonho não existia mais para Gomes. Foi quando ele procurou o neurocientista Sidarta Ribeiro e fez da investigação sobre a própria mente o ponto de partida para um filme que abraça a ancestralidade do sonho, tanto nos povos originários quanto nas religiões de matriz africana e até mesmo na própria obra do cineasta.
No ano passado, a Isabel Wittmann escreveu sobre o filme, que ela assistiu no Festival de Brasília. Agora, o Feito por Elas traz uma conversa com o realizador sobre essa obra que nasceu durante a pandemia, quando ele precisou parar com as filmagens de Retrato de Um Certo Oriente (2024), filme baseado no romance Relato de Um Certo Oriente, do amazonense Milton Hatoum.

Camila Henriques: Como essa pesquisa sobre os sonhos virou um filme?
Marcelo Gomes: Durante a pandemia, como todo mundo, a gente teve tempo para pensar em nós mesmos um pouco mais, e para o nosso interior. Eu acho que isso aconteceu com todo mundo. Então, minha amiga,(a roteirista) Letícia Simões e eu conversávamos muito sobre essas mudanças. Tinha gente que não dormia, que tinha problemas com sono, tinha gente que dormia demais, (que) parece que estava negando o momento atual, tinha gente que só tinha pesadelos, tinha outras pessoas que não paravam de sonhar. E eu, uma pessoa que vivia de imagem, cada dia sonhava menos, até o momento que eu parei de sonhar. Foi uma época que o Sidarta estava fazendo muitas palestras sobre isso na internet. Eu já tinha conhecido ele em Natal (RN). E quando a gente quer falar sobre sonho, refletir sobre sonho, vai procurar o Sidarta e o Instituto do Cérebro, que realiza pesquisas de ponta de cérebro maravilhosas.
Inicialmente, a gente queria falar com o Sidarta sobre o sonho, mas a gente vivia num momento onde existia um governo fascista que atacava muito o cinema e também a ciência. Então, eram duas áreas da sociedade muito atingidas, a produção científica e a produção cinematográfica. O Sidarta era perseguido como representante da Sociedade Brasileira do Progresso para a Ciência (SBPC). Então, era muito complicado a gente articular tudo isso. Mas a gente começou a filmar. A pandemia, pouco a pouco, foi deixando a gente filmar. E aí, finalmente, aquele governo saiu de campo, ele perdeu as eleições e não tinha mais razão de se falar dessa perseguição. Isso é coisa do passado. Então, [nos concentramos] na nossa grande investigação, que é o sonhar, o ato de sonhar. É um documentário de uma investigação científica. Mas seria impossível fazer aquele documentário clássico, frio, científico, sobre essa pesquisa do Sidarta. Meu cinema é um cinema pessoal, afetivo, do coração, da alma. Então, eu decidi me colocar (no filme). Eu acho que eu poderia trazer esse elemento pessoal, afetivo, para o documentário. Por isso que eu trago, inicialmente, o meu sentimento, que eu tenho parado de sonhar. E, a partir daí, a gente vai investigar. Mas a gente também queria fazer um documentário político, que era importante.
“O conhecimento ancestral, indígena e afrodescendente é fundamental para a gente entender as nossas raízes. Para se reinventar como país, a gente tem que entender o legado desses conhecimentos”
E eu acho que o fato político do nosso documentário é dizer que o conhecimento ancestral, indígena e afrodescendente é fundamental para a gente entender as nossas raízes. Para a gente se reinventar como país, a gente tem que entender o legado desses conhecimentos. Então, não é só a ciência que vai ter voz nesse documentário, mas também os pensamentos ancestrais, indígenas e afrodescendentes. E aí chega a mãe Beth e o Ailton Krenak, que dão uma luz maravilhosa a esse cinema. E que dizem: “a ciência tem que escutar a gente, tem que ouvir a gente, porque existem as ervas da Amazônia que podem ser cura para muita coisa”. E os próprios terreiros são cura para muitas pessoas, né? A mãe Beth cura muita gente. A mãe Beth devia estar no SUS, trabalhando para o SUS, para ajudar a gente. Então, acho que, nesse sentido, o documentário se torna afetivo, emocional, do coração, e com alma brasileira.
Isso só poderia ser feito com o Sidarta, porque é um cientista que também abriu a alma dele para as raízes brasileiras, para a alma brasileira. É um cientista que tem um santuário em casa, com as criaturas da mente dele. É um cientista que investiga as criaturas da mente. E aí é que está, que as criaturas da mente podem ser suas memórias, seu interior. A gente vem do homem de Neandertal, há 100 milhões de anos. A gente tem o mesmo cérebro deles. Houve uma evolução desse cérebro, mas esse cérebro carrega muitas coisas que a gente nem sabe o que é. A gente sonha. Há 100 milhões de anos, a gente era primo do polvo. E o polvo sonha também. Como o polvo sonha, tem a ver também com o que a gente sonha. Então, eu acho que esse processo, esse filme, começou com esse dispositivo, essa crise minha (sem) sonhar, e isso começa a abrir várias portas. E chega num elemento muito maravilhoso. Essa forma brasileira de refletir sobre sonhar, sobre o ato de sonhar, eu acho que é um filme de autoconhecimento, e eu me conheci melhor, que eu me tratei melhor. E como o Krenak disse, a vida fica muito melhor quando a gente entende que tem gente dentro da gente.

Camila: E essas criaturas da mente, essa gente dentro da gente, são ilustradas de várias formas no filme, mas uma que eu destaco é o próprio cinema. No caso, ao seu cinema, porque você volta ao Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), e também volta a esse cinema de formação do Eisenstein, com a cena da escadaria de Odessa, do Encouraçado Potemkin (1925), que aparece algumas vezes no filme. Eu queria que você falasse sobre isso. Como foi montar essa lógica para unir não só a ciência e os saberes ancestrais, mas também as suas referências?
Marcelo: As minhas referências. Eu acho que isso foi o meu norte. Eu queria entender o que o Sidarta me dizia, que é algo muito complexo, que são elementos muito complexos, a partir da minha experiência de vida. E minha experiência de vida é o cinema. O cinema é que eu entendo. Então eu queria, de uma forma ou de outra, compreender como é que surgiam aquelas criaturas na minha mente quando estou realizando um trabalho. E como que, às vezes, eu ouço vozes daquelas criaturas, daqueles personagens, dizendo para mim o que eles têm que falar. Aquilo é um processo que eu entendia muito bem. Mas também tem que entender como esse processo de fabulação do próprio cérebro, das ondas cerebrais e desse inconsciente. Então, por isso que eu conto aquela história do Cinema, Aspirinas e Urubus, que foi a minha primeira grande experiência de imersão num mundo criado para mim, num mundo imaginário. E tem um momento que eu pensava que estava recebendo um espírito. E eu não estava escrevendo o roteiro. Aquelas pessoas, naturalmente, diziam para mim o que estavam falando.
“O carnaval é o momento que o imaginário está presente, que o inconsciente desabrocha. Com as fantasias, parece que o mundo voltou. Você vive um reflorestamento do imaginário. A gente tem que reflorestar o nosso imaginário. E eu acho que a proposta do nosso documentário é essa. Vamos reflorestar o imaginário”
Então, a partir daí, pouco a pouco, eu fui tentando entender o que o Sidarta me dizia a partir da minha experiência cinematográfica, principalmente porque teve um dia que eu mandei o meu primeiro curta (Maracatu, Maracatu, de 1995) para ele assistir. E ele falou: “nossa, Marcelo, você lembra daquilo que a gente estava falando das criaturas da mente, que é tão difícil de você entender? Olha lá, aquelas criaturas (do filme), que chegam no carnaval, e que se vestem e fazem aquela performance”. E o carnaval o que é? É uma floresta de emoções. O carnaval é exatamente isso. É uma floresta de sentimentos e emoções, que a gente constrói, e que a gente entra no imaginário. O carnaval é uma coisa muito importante para mim. Tudo bem, eu sou pernambucano (risos). Mas o carnaval é o momento que o imaginário está presente, que o inconsciente desabrocha. Com as fantasias, parece que o mundo voltou. Você vive um reflorestamento do imaginário, como o Krenak fala. A gente tem que reflorestar o nosso imaginário. E eu acho que a proposta do nosso documentário é essa. Vamos reflorestar o imaginário. O carnaval é uma forma de reflorestar o imaginário. Vamos deixar os robôs trabalhando para a gente e vamos fazer essa dança cósmica que o Krenak tanto fala.

Camila: Eu gosto que o filme proponha essa discussão com várias provocações. Ele vai desde a mãe Beth até a sua própria mãe, e a gente percebe que elas dialogam, mesmo vindo de lugares diferentes. Há uma conversa aí. Mas o filme não termina com uma solução fácil, porque você continua sem sonhar e a vida volta ao normal depois da pandemia. Eu queria saber o que isso te mudou como realizador, porque depois você voltou à produção do Retrato de Um Certo Oriente.
Marcelo: O meu cinema é um cinema que quer instigar a memória. Fazer você pensar coisas que aconteceram com você na vida, instigar a imaginação, imaginar coisas a partir daquele filme. Não quero trazer respostas fáceis. O que eu acho que descobri além do filme é que eu estava, de uma forma ou de outra, cortando portas do meu inconsciente, portas que são fundamentais para o meu processo de imaginação, para o meu processo de criação, e para a minha intuição. Então, eu acho que foi fundamental respeitar mais o ato de sonhar e, pouco a pouco, voltar a sonhar. Eu acho que essa experiência do filme me fez refletir, antes de voltar a sonhar mesmo, me fez refletir sobre a importância do ato de sonhar. O sonhar faz parte da vida. Mas como sonhar não tem nenhuma experiência prática, assim como a poesia não foi feita para ganhar dinheiro, nesse mundo capitalista e pragmático que a gente vive, isso é deixado em segundo plano. Mas é fundamental trazer isso, porque o inconsciente faz parte da nossa vida.
Camila: E você voltou, então, a sonhar?
Marcelo: Voltei. Hoje, eu sonhei muito com as nossas entrevistas. Como é que elas iam ser? (risos)
Camila: Antes de encerrar, eu queria falar um pouco da participação do Sidarta, porque ele vem como um co-entrevistador. Tem um momento no filme que eu gosto muito, em que você o coloca com outro pesquisador que tem visões opostas, e os dois surgem tão pequenos, perto daquela areia imensa. É muito bonito ver isso. Eu queria que você falasse um pouco sobre esse posicionamento dele como entrevistador.
Marcelo: Eu acho que o grande barato do Sidarta, como entrevistador, é que ele é um cientista, ele apresenta a pesquisa dele logo nisso, mas ele deixa a gente descobrir outras facetas dessa pessoa (que está sendo entrevistada). Ele acredita em outros elementos que vão além da ciência. E ele se dispõe a colocar isso em prova. Ele também decide até mesmo fazer uma experiência. Ele experimenta a Jurema, e a partir disso, ele também narra o seu sentimento naquela viagem psicodélica. E foi ali naquele momento, vendo aqui na minha frente, que eu acho que ele estava dialogando comigo também, e dizendo “Marcelo, você tem que entrar também nesse barato. Você tem que investigar isso, porque talvez esse sentimento sobre o inconsciente não esteja completo”. E eu me entreguei.
Lógico, tive uma ajuda psicológica, uma semana de preparação. Eu tomei ayahuasca num lugar muito seguro, com pessoas de aldeias indígenas do Acre. Não foi num lugar qualquer, com uma pessoa qualquer. Foi muito preparado. E foi uma experiência que foi fundamental para mim. E é tão curioso, porque o Sidarta fala da mãe dele, depois da experiência, e eu vou falar da minha mãe, e aí vou conversar com ela, e ela me diz coisas que têm muito a ver com a mãe Beth. Então, o Sidarta me abriu portas que foram fundamentais para esse documentário. Porque ele é uma pessoa aberta e eclética, ele não é um cientista clássico. É uma pessoa que investiga sonhos, e é reconhecida pelo mundo todo.


