Críticas e indicações,  Seriados

Last of Us, gênero e atuação

Texto publicado originalmente na newsletter para assinantes do financiamento coletivo do Feito por Elas.


A essa altura muita gente está assistindo ao seriado The Last of Us (2023-), criado por Craig Mazin adaptado do jogo de video game escrito por Neil Druckmann. Eu não joguei e nem assisti ao jogo na época. Estou vendo agora, porque tem um amigo hospedado aqui em casa que começou a ver a série e começou a jogar. Impressiona a semelhança, mas também as mudanças que melhoram muito a narrativa televisiva em relação a ele. Mas não vou falar ainda sobre o seriado, antes de terminar de ver a temporada, que eu estou amando (ops, falei).

Para quem não está vendo, a trama é sobre uma epidemia de fungos que se instalam nos corpos humanos e passam a controlá-los. O surto aconteceu em 2003 e, depois da morte de milhares de pessoas, a série se passa em 2023, 20 anos depois, quando fiapos de sociedades tentam manter seus grupos vivos em condições ainda inóspitas. E sim, existe uma saturação de histórias de zumbis.. Em TLOU a palavra zumbi foi até mesmo proibida no set, mas, assim, são corpos mortos andando na rua, mesmo que guiados por fungos. Acho que podemos chamar de zumbis, não, é? Enfim, apesar da saturação do subgênero, a história da série não é sobre zumbis: é sobre os relacionamentos que fazemos pelo caminho (risos). Eu sei, histórias de zumbis nunca são sobre zumbis. (Veja o vídeo do Thiago Guimarães sobre isso, está muito bom!).

Mas tem um pequeno detalhe sobre os protagonistas. O primeiro deles, Joel (vivido por Pedro Pascal) é um homem que perdeu a filha no surto de 2003. Já Ellie (interpretada por Bella Ramsay) é uma menina de 14 anos que já foi mordida (mais de uma vez) por pessoas infectadas e nunca desenvolveu a doença dos zumbis. Algumas pessoas acreditam que Ellie, por ser imune, é a chave para a salvação da humanidade. Essa combinação entre homem durão e menina salvadora no Apocalipse também não é nova e foi debatida no podcast The Next Picture Show, em que compararam a série com Filhos da Esperança (Children of Men, 2006), de Alfonso Cuarón, mas também com Station Eleven (2021-2022) e outros.
E apesar dessas recorrências o seriado consegue criar um impacto emocional razoável. Ouso dizer que o terceiro é provavelmente a melhor coisa que você vai ser de televisão nesse ano. O quinto também é maravilhoso, assim como o sexto, dirigido por Jasmila Zbanic, de Quo Vadis, Aida? (2020). Estou, por enquanto, com a proporção de cinco em seis episódios chorados. É uma métrica, não é? 😛

E esse rodeio todo foi para dizer que recentemente indiquei aqui o filme Catarina, a Menina Chamada Passarinha (Catherine Called Birdy, 2022), protagonizado pela própria Bella Ramsay, que hoje está com 19 anos, assim como cansei de elogiar Lyanninha Mormont, sua personagem de Game of Thrones (2011-2019) uns anos atrás. Mas recentemente, ela disse em entrevista para a GQ Magazine “Em Catarina, a Menina Chamada Passarinha, eu usava vestidos. Em Becoming Elizabeth (2022), eu estava de espartilho. E eu me senti super poderosa nele. Interpretar essas personagens mais femininas é uma chance de ser algo tão oposto a mim, e é muito divertido”.

Isso porque em janeiro desse ano, em uma entrevista para o New York Times, Ramsey revelou ser uma pessoa não-binária e escolheu os pronomes ela/dela. Ela disse: “Acho que meu gênero sempre foi muito fluido. Alguém me chamava de ‘ela’ ou e eu não pensava nisso, mas eu sabia que se alguém me chamasse de ‘ele’ era um pouco emocionante”. Por isso, embora use os pronomes femininos, diz que se incomoda quando é chamada de jovem mulher, ou de mocinha. Também fala que utilizou um binder (uma espécie de colete ou top usado para disfarçar os seios) em boa parte da filmagem do seriado. Na entrevista para a GQ ela conta, ainda, que conversou muito com seu colega de trabalho, Pascal, no set. Ele foi um vocálico apoiador quando sua irmã, a também atriz Lux, revelou sua experiência enquanto mulher trans em 2021

Diante do backlash em torno do terceiro episódio do seriado, que mostra em flashback um casal de homens sobrevivendo ao apocalipse, ela disse “eles vão ter que se acostumar com isso. Se você não quer assistir ao seriado porque tem histórias [sobre] gays, porque tem um personagem trans, isso é com você e você está perdendo”. A matéria da GQ afirma que, assim como o jogo, a segunda temporada da série (já confirmada) terá ainda mais histórias centradas em outras personagens queer, incluindo a própria Ellie. 

Vendo a carreira de Bella Ramsay deslanchar assim, é impossível não lembrar do artigo de Frances Perraudin que foi publicada no The Guardian uns anos atrás, intitulado Cast more transgender actors in non-trans roles, union urges (“Escale mais atores trangênero em papéis não-trans, sindicato insta“). O texto cita a dificuldade que atores e atrizes trans têm de manter uma carreira, uma vez que constantemente se vêm relegados a papéis de nicho. O sindicato citado havia publicado um guia para profissionais da área, dizendo que, muitas vezes, o fato de um intérprete se trans pode ser invisível no papel que essa pessoa interpreta, não afetando a personagem, mas representado um avanço pra representatividade na indústria. Isso porque, a não ser que a trama gire em torno da transgeneridade das personagens, por padrão elas costumam ser lidas como cisgênero, mesmo que isso não seja estabelecido na trama. E, claro, pessoas não binárias são também transgênero. Então, viva Ellie e viva Bella Ramsay e que ela tenha uma longa carreira, cheia de personagens interessantes, parecidos ou não com ela, com corpete, com binder ou sem nenhum, do jeito que ela quiser. 

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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