Memórias de uma menina
Aproveitando a publicação do episódio sobre a filmografia da Helena Solberg no podcast Feito por Elas, a coluna aborda hoje a obra Minha Vida de Menina, de Helena Morley, que foi adaptado para o cinema pela Solberg no longa metragem Vida de Menina (2003). A obra é uma compilação dos diários de Helena Morley – pseudônimo de Alice Dayrell Caldeira Brant (1880-1970) -, escritos entre 1893 e 1895, em Diamantina, Minas Gerais. Na época, a autora tinha entre 13 e 15 anos, mas o livro só foi publicado em 1942, quando a autora já tinha 62 anos. Por ter o formato de diário, a obra não entrou nos cânones da literatura brasileira do século XIX e foi reconhecida recentemente quando entrou na lista de livros para o vestibular da Fuvest de 2017 e novamente agora em 2019.
É um livro com muitas entradas, textos fragmentados, que dão conta de uma variabilidade de assuntos e personagens, que podem tornar a leitura um tanto quanto enfadonha e dispersiva. Por outro lado, Minha Vida de Menina torna-se interessante por traçar um panorama dos costumes e hábitos de uma pequena cidade do interior do Brasil no final do século XIX. A marca da oralidade, do coloquial é presente no texto, que preserva a memória coletiva de socialização de personagens abordados, além da memória individual da própria Morley.
A religião e a família são os meios em que a vida pública acontece, tanto pelas vivências da menina nas procissões e festas religiosas, quanto pelas relações que ela estabelece com os pais, os irmãos, os tios e as tias, os primos e a avó. A escola exerce papel importante para autonomia das mulheres. As meninas da Escola Normal eram orientadas para o magistério com o intuito de obter uma profissão e conseguir sobreviver de forma independente, sem precisar das posses da família. A tia Madge é o exemplo mais claro desta orientação pedagógica. De origem inglesa – que respeitava o trabalho como algo digno -, a personagem representa uma perspectiva de futuro para a menina. Diferente da avó materna, que carregava os costumes arcaicos de uma sociedade escravocrata, dona da casa grande, que ainda mantinha quem era escravizado sob sua tutela.
Situada no contexto da proclamação da República e após a abolição da escravatura, Diamantina era uma cidade repleta de contradições, entre o conservadorismo da sociedade e a busca pela modernização. A região estava em período de decadência econômica, pois as lavras de diamantes tornaram-se escassas. Os mineradores, como o próprio pai de Morley, encontravam-se endividados. Morley era pobre por parte da família do pai, de imigrantes ingleses, que honravam o trabalho, mas ainda era privilegiada por ser branca e por receber os auxílios da avó materna.
Quem era escravizado tornou-se agregado da família da avó. Eram legalmente livres, mas permaneciam sem posses, sem acesso à educação e viviam de migalhas dos abastados. Caso optassem por sair da casa grande, viveriam em condições de vida degradantes em lugares afastados dos grandes centros ou vagariam pela cidade, considerados como loucos. O racismo é presente no livro, mas no filme de Helena Solberg ganha contornos bem mais explícitos, com as interferências inseridas pelo roteiro de Solberg com Elena Soarez.
Incentivada pelo pai e pelo professor de português a escrever suas memórias sobre seu cotidiano, Morley relata diversos causos e anedotas que faziam parte de sua rotina. Talvez o excesso de personagens pitorescos que povoam os diários faz com que Minha Vida de Menina seja um livro de difícil fruição, diferente de outras obras de formação. A adaptação de Solberg para o cinema conseguiu construir bem uma dramaturgia de forma mais coesa e menos dispersiva.
Livro: Minha Vida de Menina
Autora: Helena Morley
Ano: 1942
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 335
Preço médio: R$ 27