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Toda Noite Estarei Lá

Tati Franklin e Suellen Vasconcelos nem sempre mantém o foco na batalha contra a igreja, mas dão contornos interessantes com o retrato bastante humano de sua protagonista


Mel Rosário contraria a expectativa de vida das pessoas trans no Brasil por muito, com quase 60 anos, um salão de beleza e uma crença muito forte em Deus, sua principal batalha além da diária para sobreviver, também como qualquer pessoa pobre no país, é contra a igreja evangélica do bairro que não permite sua entrada. Além dos protestos que a mulher faz todas as noites com cartazes na frente do local, um processo judicial corre há anos, e mesmo depois de perder, recorrer, vencer e retomar a ação, Mel segue um embate diário para poder exercer sua fé no pequeno espaço que a rejeita. Tati Franklin e Suellen Vasconcelos acompanham durante anos, com espaço entre as filmagens, a jornada dessa mulher que atravessa o momento político que já tanto conhecemos, a eleição de Bolsonaro. As documentaristas não se fazem presente pela imagem, mas suas vozes e intenções dão sempre as caras, lembrando que o aparato cinematográfico existe, embora seja Mel muitas vezes que as chame ou as convide a filmar algum momento. É intenção principal de Toda Noite Estarei Lá, ao que parece, focar nessa batalha contra a igreja, sem se preocupar com contextos mais aprofundados de vida e existência de Mel, enquanto mulher trans ou parte de sua comunidade, mas enquanto em muitos momentos esse propósito parece não ser tão pontuado com a força que emana, é a humanidade da personagem que dá contornos mais interessantes ao filme. Mora na essência de quem é Mel, o maior valor da obra que retrata esse recorte de sua vida.

Pelo título e condução, é quase esperado que as cenas que insistam nessa presença da mulher em sua ação ativista na porta da igreja ilustrem boa parte do filme, mas, Tati e Suellen pincelam essa atividade em momentos pontuais e, já ao fim, unem algumas dessas imagens em um compilado que não passa a exata dimensão do que parece ser essa luta exaustiva. Pessoas que encontram Mel nas ruas muitas vezes perguntam a ela se seu protesto haveria retornado, dando conta de que a vizinhança que a cerca a reconhece e conhece bem sua persistência, mas para o espectador essa questão não se dá com tanta intenção. O que realmente é forte, não apenas narrativamente, é a personalidade dessa mulher, e esse retrato que permite uma observação particular em sua casa, com familiares ou sozinha partilhando seus pensamentos, dá conta de sua fé, muito intensa, da pessoa amorosa que é, do engajamento político de esquerda, de seu talento para pintar palavras em papéis e paredes e de sua resiliência para viver não apenas dentro de seu contexto de gênero, mas também social. O recorte não se abre para o que veio antes, a mãe a trata com carinho e reconhece muito bem seu nome, muitos vizinhos a chamam de “querida” e fora o preconceito muito claro da igreja evangélica que a barra, a transfobia mais descarada só se mostra enquanto a equipe de filmagens aguarda do lado de fora da audiência judicial, e são elas mesmas que encaram e respondem aos ataques de uma pessoa que nada tinha a ver com aquilo tudo, mas se sentiu no direito de levantar, caminhar até lá, chamar Mel por seu nome morto e proferir as maiores atrocidades. 

Então, ainda que o foco seja a luta entre a protagonista e uma instituição religiosa específica, sua existência como mulher trans sempre reverbera outros debates e contornos. Mesmo que não importe ao filme como foi a aceitação dos outros ao seu redor, se sua mãe erra seus pronomes talvez apenas por esquecimento em um único momento, ou como é a intimidade e cada pequeno processo de sua vida, sempre vazam pelos cantos as dificuldades que ela encontra por ser quem é. O otimismo de Mel, que sempre transborda muito afeto e sorrisos, a alegria de a ver conquistando a compra do primeiro carro ou de cada encontro nas ruas, com pessoas que gostam dela, são mais potentes que o ódio que se vê nas outras cenas. É um pouco como a própria mulher enxerga o mundo, com sua fé um tanto excêntrica, mas que é aplicada em suas atitudes diariamente. A persistência incompreendida por muitos, de ser aceita naquela igreja de bairro ao invés de simplesmente buscar outra, faz parte de um enfrentamento muito maior, de conquistar direitos em uma sociedade que tanto os remove, ainda mais no contexto político atravessado nos anos em que as filmagens se passam. 

Toda Noite Estarei Lá revela os dispositivos cinematográficos quase como armas silenciosas. Na escolha de Tati e Suellen de manterem na montagem diversas cenas em que pessoas questionam, debatem ou reclamam das filmagens, percebe-se que os preconceitos e violências se acovardam perante o registro. É quando rebate que não pode ser filmada que uma mulher coloca para fora toda sua transfobia, mas o áudio a entrega, e são os muitos que pedem para não serem filmados ou proíbem as câmeras que se intimidam por sua presença, o que diversas vezes pode ter protegido Mel em seus protestos e evitado maiores violências, verbais ou até físicas, quem sabe. É o poder da imagem que se revela em paralelo à história de Mel, e em certo momento, enquanto um homem que adentra a igreja transfóbica levanta seu celular filmando a equipe do documentário sem evidenciar suas reais intenções, as lentes de Tati e Suellen se levantam e apontam de volta para ele, acontece uma intimidação, uma briga direta entre registros opostos, um duelo de câmeras em que cada um usará o que tem para suas próprias finalidades.

São as horas gravadas de Toda Noite Estarei Lá que resguardam Mel e contam sua história para o mundo, exibem o apoio de muitos, relações de amizade e carinho e ao mesmo tempo, denunciam os preconceitos que ela vive em sua luta incessante para garantir um direito básico de exercer sua fé como escolheu. 

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Crítica de Cinema e formada em Rádio e TV. Apaixonada pela sétima arte desde sempre, trabalhando com marketing para pagar as contas e assistindo a filmes para viver.

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