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Todd Haynes e o New Queer Cinema

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Fiquei pensando o quanto às vezes faz falta a categoria nossa, que cinema! entre os lançamentos recentes. A sensação se intensificou porque na semana passada assisti a dois dos primeiros filmes de Todd Haynes. E que experiência incrível! O primeiro deles é o média metragem Superstar: The Karen Carpenter Story (1987) em que ele usa bonecas Barbie para contar a história da cantora.

Com acidez, mas ao mesmo tempo de maneira respeitosa à sua memória, ele questiona as cobranças, as relações familiares, a pressão estética e a falta de acolhimento, questões relacionadas à anorexia nervosa que a levou à morte aos 32 anos. O uso de bonecas estiliza os eventos e dialoga com um mundo de aparências retratado. Tão curto e tão genial, o filme foi tirado de circulação pela família (compreensível, porque seu retrato não necessariamente é dos mais lisonjeiros).

Disponível com legendas no youtube, ainda que não na melhor qualidade possível. 

O segundo é Veneno (Poison, 1991), seu longa de estreia, que levou o grande prêmio do júri do Festival de Sundance e fez parte do conjunto de obras que levou a crítica B. Ruby Rich a criar o termo New Queer Cinema (Novo Cinema Queer) para nomear o movimento de jovens cineastas que ela identificou nesse momento do começo da década de 1990. Na época ela escreveu:

De repente, apareceu uma leva de filmes fazendo algo novo: renegociando subjetividades, apropriando-se de gêneros inteiros, revisando histórias à sua própria imagem. (…) É claro que os novos filmes e vídeos queer não são todos iguais, nem compartilham uma única estética, estratégia ou preocupação. No entanto, estão unidos por um estilo comum. (…) há traços de apropriação e pastiche em todos eles, ironia, além de uma reinterpretação da história sob a ótica do construcionismo social. Rompendo definitivamente com abordagens humanistas mais antigas e com os filmes e vídeos alinhados à política identitária, essas obras são irreverentes, enérgicas, ora minimalistas, ora excessivas. Acima de tudo, são cheias de prazer.

Pois bem, em seu Veneno, Haynes faz exatamente isso: fala de prazer e de exclusão, de estigma e de pertencimento, se apropriando de vários cinemas (como seguiu fazendo, depois com mais recursos, no futuro de sua carreira). Em um filme curto, de cerca de uma hora e meia, ele entrelaça três narrativa. A primeira delas é um falso documentário, com cara de reportagem, sobre um adolescente que desapareceu, literalmente voando pela janela. Os depoimentos de familiares e conhecidos vão dando pistas sobre sua personalidade e o ambiente ao seu redor.

A segunda é um melodrama lindíssimo, com cenografia teatralmente simples, sobre jovens que se conhecem no sistema correcional para menores e se reencontram adultos em um presídio. A narrativa não está preocupada em boa representatividade: os personagens são sensíveis, perversos, complexos. 

A terceira, que me atraiu particularmente, usa dos códigos de gênero do filme B de ficção científica em preto e branco da década de 1950. Nele, um cientista bebe sem querer um elixir de sexualidade em que ainda estava trabalhando e adquire uma espécie de lepra (nos termos do filme) altamente contagiosa pelo contato. Seu beijo passa a ser mortal e ele é procurado como um serial killer, em uma clara referência à epidemia de AIDS. 

O visual do filme (ou dos filmes) é vistoso e instigante, apesar (ou por causa) do baixo orçamento. O queer, o diferente, o estranho, o deslocado, o não-normativo é trazidos para o holofote com uma linguagem provocativa. E que falta faz ver filmes assim, tão contundentes: políticos sem esquecer o estético, esteticamente estimulante sem esquecer o que querem falar. 

Assistido em DVD (Box Diversidade No Cinema).

P.S. Uma curiosidade: nos extras do DVD há uma entrevista com Haynes gravada durante a pandemia, em 2021, sobre o aniversário de 30 anos de Veneno. E lá ele relata que foi esse filme que deu início à longa relação de amizade que ele tem com Christine Vachon, produtora de seus filmes até hoje, mas também de outro jovem aspirante a cineasta que trabalhou no filme, com seu único crédito de casting: nada mais nada menos que o brasileiro Karim Aïnouz.

Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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