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Orlando, Minha Biografia Política (2023)

Usando a obra de Virginia Woolf para dar contorno a diversas vivências, Paul B. Preciado eleva a figura da autora enquanto discute questões fundamentais 


A identificação de Paul B. Preciado com Orlando torna-se nesse filme mais do que uma homenagem à figura de Virginia Woolf e seu livro, mas uma exaltação da obra enquanto um diálogo entre seu conteúdo e a história das pessoas trans, utilizando o texto para colocar em pauta desafios enfrentados por essas representações modernas do protagonista da escritora. Em uma conversa direta entre os autores, é a própria jornada do diretor que se costura ao redor da história de todos os personagens, que apresentam seus relatos misturando-os naturalmente à narrativa de Woolf, se abrem e contam suas vivências, e, quando percebemos, a ficção invade suas narrativas. Preciado, com seu filme, declara-se então a Virginia, tenta a compreender, sua sexualidade, seu gênero, como foi existir como ela em seu tempo, como ela permanece viva e imortal a partir do legado deixado escrito, e, nesse mesmo caminho, dá rosto e nome a todas as pessoas que, como ele, se identificam nessa complexidade que o livro representa. Nenhum destes personagens acordou transformado em outro sexo, mas precisam batalhar e muito para que essa mudança de certa forma aconteça e seja reconhecida. Da busca pelos hormônios, consultas infinitas com psiquiatras, diagnósticos e documentações, Orlando, Minha Biografia Política é de fato pouco um documentário linear contando cada trecho de uma vida e muito uma obra que se concentra nos debates mais importantes, sendo assim capaz de contar a história de muitos. 

Preciado seleciona mulheres trans, homens trans e pessoas não-binárias de diversas idades, origens e cores, para explorar a pluralidade não apenas da identificação, mas também da representação desses gêneros, rompendo com o binarismo heteronormativo imposto pelo sistema em que para se declarar uma mulher é preciso performar feminilidade e assim por diante. As personagens deste filme enxergam além disso e são, como Orlando, tão à frente do tempo em que nasceram quanto atemporais. Em outra adaptação para o cinema, o filme de Sally Potter não agradou Preciado em suas representações, talvez por isso seja fundamental para ele que Orlando não seja apenas um, mas diverso, plural, um coletivo passando pelas fases do livro de acordo com os gêneros que mais se aproximam, homens trans e pessoas não-binárias na fase anterior à mudança de sexo e mulheres trans a partir de tal. Mesmo que sejam papéis, cada Orlando tem seu nome verdadeiro destacado e o espaço para dividir sua jornada, assim Orlando, Minha Biografia Política garante que o foco não seja a visão individual de seu diretor e roteirista sobre a vivência trans, mas uma união de peças que acaba ajudando a contar sua própria história. 

Embora cada pessoa tenha suas particularidades e experiências, os desafios são inegavelmente similares, com suas famílias, nas ruas, na busca por atendimento médico ou nas burocracias, a identificação é um ponto fundamental encontrado tanto na do autor e seus personagens com a figura da ficção de Virginia Woolf quanto entre todos ali, de carne e osso, que estão lado a lado nas cenas, atrás e na frente das câmeras ou até ultrapassando a tela. Encontrar representações que apoiem a sua existência faz parte do processo de desenvolvimento de qualquer um e é portanto nessa linha que Preciado busca construir um longa tão diverso e que discuta questões importantes sem focar apenas em si mesmo. É preciso que pessoas trans se vejam nas telas, não somente e/ou constantemente retratadas no sofrimento, mas também pela felicidade de suas vidas e descobertas, pela energia que encontram em lutar por seus direitos, e nesse sentido, o documentário busca mais seus risos frente às dificuldades do que a dor dos obstáculos. 

Preciado não ignora os problemas, porém não joga luz neles com pesar, e sim com seriedade enquanto vê com certo otimismo a luta dessas pessoas e a própria, seja pelos hormônios que são tão importantes nessa jornada de identificação e se tornam um número musical, ou pelos passaportes corrigidos que viram uma celebração no tribunal. Se Virginia Woolf em um passado distante podia pensar histórias que desafiavam o tempo em que existiam, o diretor também imagina um futuro com menos binarismos, no qual os padrões de representações de gênero se dissolvam e as pessoas sejam reconhecidas por como elas mesmas se compreendem, de crianças a idosas, respeitadas pelos nomes e formas que escolheram ser e se apresentar ao mundo. Assim, Orlando, Minha Biografia Política é mais um manifesto do que um filme, uma obra de possibilidades estabelecida em seu tempo como material para o futuro, de uma discussão que o tomará como documento, como retrato dos Orlandos do presente e os desafios enfrentados em um hoje que logo ficará no passado. 

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Crítica de Cinema e formada em Rádio e TV. Apaixonada pela sétima arte desde sempre, trabalhando com marketing para pagar as contas e assistindo a filmes para viver.

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