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[44ª Mostra de São Paulo] Mães de Verdade

Esta crítica faz parte da cobertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 22 de outubro e 4 de novembro em formato online.

Depois dos irregulares Esplendor (Hikari, 2017) e Vision (2018), a premiada cineasta japonesa Naomi Kawase retoma um cinema tocante e poético com Mães de Verdade (Asa ga Kuru, 2020). O filme é baseado no romance de 2015 de Mizuki Tsujimura e a linguagem acessível, que já aparecia no doce Sabor da Vida (An, 2015), é utilizada em uma narrativa que reflete sobre a maternidade e suas muitas faces. Logo na sequência de abertura temos pistas sobre o que está por vir, quando, acompanhado de uma suave música de piano, ouvimos o choro de um bebê nascendo.

A história nos apresenta a Satako Kurihara (Hiromi Nagasaku), a dedicada mãe de um menino pequeno. Depois de alguns problemas na escola, onde a criança foi acusada de empurrar um coleguinha, é confrontada com a noção de confiança incondicional ou não em seu filho. Abalada, recusa-se a acreditar que ele esteja mentindo quando diz que não se lembra de ter empurrado o outro garoto. A câmera captura o momento sutil em que a personagem, encarada por outras mães, suspira.

Essa sutileza e a já citada suavidade são impressas em diversos aspectos do filme, das canções que indicam sensações das personagens, passando pela fotografia luminosa, que capta a luz filtrada entre folhas, vidros e tecidos e projetada sobre a pele das pessoas. O flare também é constantemente visível. Kawase se mostra, como sempre, atraída por imagens poéticas e visualmente relaxantes e pela própria noção de criação de imagem, como quando Satako e seu marido Kiyokazu (Arata Iura) tiram uma selfie juntos e ela registra o registro, com o olhar da câmera sobre a câmera.

Em flashbacks, descobrimos que Kiyokazu sofre de azoospermia e que por isso o casal não poderá ter o filho biológico que desejam. O câmera recai sobre o papel do resultado, mas ele fica fora de foco, como se as palavras escritas não tivessem a mesma importância das emoções registradas. Com a desistência do tratamento posterior, vem o choro dele e a constatação dela de que “somos só nós dois”, como expressão de alívio e de conformidade. Nesse ponto o filme parece querer abordar temas a relação entre a honra e a prole, que são difíceis de captar sem o contexto cultural adequado.

E aí Kawase utiliza de um dispositivo expositivo para apresentar Baby Baton, uma agência privada de adoção, em que as gestantes que não desejam ficar o bebê moram em uma estrutura localizada em Hiroshima e e depois que as crianças nascem, são encaminhadas para as famílias na lista de espera. Tudo isso aparece em uma reportagem inteira dentro da diegese, a que o casal assiste e que os motiva a procurar a empresa. Trata-se de um momento de quebra e de uma estratégia narrativa bastante desinteressante.

Por meio desse processo é que Satako se torna mãe e que conhecemos Hiraki Katakura (Aju Makita), a mãe biológica de seu filho. Ela é uma menina de 14 anos que engravidou de seu namorado da escola e só descobriu a gravidez quando o prazo para o aborto legal já havia passado. E a partir daí o filme passa a focar na trajetória dela, começando com a vergonha e falta de acolhimento por parte dos pais, a saída de casa, o trabalho, as dificuldades e amizades, até o momento em que ela reencontra com Satako. Da menina com uniforme colegial, ela virou uma jovem com cabelos pintados de loiro, unhas vermelhas e casaco amarelo chamativo, refletindo na aparência sua jornada de crescimento e fazendo com que Satako não a reconheça.

É admirável a forma como, mesmo com um roteiro irregular, o drama dessas mulheres é impresso com eficiência na montagem não linear, que funciona ao entrelaçar as duas histórias. A ligação entre elas se dá justamente pela maternidade e seus desdobramentos. As expectativas e as cobranças que ambas sofrem são sobre o “ser mulher”. Hikari, especialmente, é o retrato das meninas para quem a sociedade vira as costas e que, sem ser queridas por ninguém, se vêm precocemente amadurecidas.

A história sobre as mães do menino é uma reflexão sobre maternidades possíveis, embora Kawase trabalhe o conceito com uma perspectiva bastante idealizada e mesmo imaculada. Satako tem que abrir mão da carreira de sucesso para poder adotar a criança. Hikari, que desejava ficar com o bebê, vê toda sua vida mudar. “Te encontrarei”, diz a mensagem escondida no bilhete. Sem grandes sobressaltos, mas como uma emoção latente que pulsa sob a superfície, a história se desenrola no seu próprio tempo. Mães de Verdade se entrega a um drama contido, com uma estética calculada, mas, embora piegas, acerta na emoção.

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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