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[47ª Mostra de São Paulo] Não Espere Muito do Fim do Mundo (2023)

Esta crítica faz parte da cobertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 19 de outubro e 1 de novembro.


Uma comédia romena. Não é todo dia que a gente tem a chance de ver uma. Há alguns anos tive o prazer de ver, na própria Mostra de São Paulo, Eu não me Importo se Entrarmos para a História como Bárbaros (I Do Not Care If We Go Down in History as Barbarians, 2018), do cineasta Radu Jude, filme que gostei muito. E agora retorna com outro filme (e outro título maravilhoso) com Não Espere Muito do Fim do Mundo (Do Not Expect Too Much from the End of the World, 2023), talvez ainda mais engraçado que aquele. Depois de retratar a extremismo e o racismo, agora o foco está na força de trabalho precarizada e na nossa relação com as imagens. O filme foi vencedor do Prêmio Especial do Júri no Festival de Locarno.

A protagonista é Angela (Ilinca Manolache), que trabalha como produtora em uma empresa de audiovisual, mas também presta serviços de motorista de Uber (“nós não somos funcionários, eles dizem que são só um aplicativo”, ela explica) e ainda ganha alguns trocados pelo Tik Tok com seus vídeos satíricos. Ela usa um filtro que transforma sua aparência na de um homem calvo, com grossas sobrancelhas, que profere obscenidades, compartilha sons escatológicos e solta frases de efeito e posicionamentos questionáveis. Mas quanto mais esdrúxulo e grotesco é o comportamento do personagem, mais Angela garante essa renda extra, na economia de atenção mediada pelo aplicativo.

O filme dialoga com outro, aparentemente um clássico romeno, chamado Angela Keeps Going (1982), que retrata o cotidiano, especialmente de trabalho, de uma taxista chamada Angela (Dorina Lazar, que reaparece em Fim do Mundo). Jude futiliza cenas do filme antigo, em cores, para comentar outras, em preto e branco, da narrativa contemporânea, estabelecendo uma comparação entre as rotinas de ambas as mulheres. E se Angela da década de 1980 precisava lidar com o machismo e o cansaço, Angela da década de 2020 está em uma situação muito pior, trabalhando pelo menos 16 horas ao dia, almoçando sanduíche e sem tempo para fruição, descanso ou intimidade.

Até mesmo o figurino dá pistas dos mecanismos usados pela protagonista contemporânea como forma de lidar com sua rotina. Se no passado a taxista vestia saia plissada, camisa de botão e salto alto, um dresscode para um trabalho que, se não exatamente bem remunerado, pelo menos era valorizado, Angela agora dirige para cima e para baixo em um trânsito horroroso, usando vestido estilo camisetão recoberto de paetês, porque se seu trabalho vale muito pouco, pelo menos ela mesma insere ludicidade e glamour, do jeito que pode, na labuta diária. E é claro que isso é mais um comentário ácido e sarcástico, entre tantos proporcionados pelo filme.

Angela entrevista quatro pessoas que foram funcionárias de seu cliente e sofreram acidentes de trabalho. E descobriu que isso tudo era para que dois deles fossem escolhidos para uma campanha defendendo e elogiando a empresa e pedindo que outras pessoas trabalhadoras usem equipamento de segurança. Diante da situação, um de seus colegas defende suas pretensões artísticas, dizendo que todo filme na história do cinema é corporativo (e mente), desde que os irmãos Lumiére filmaram os operários saindo de sua própria fábrica. Mas ele cit, também, Monstros (Freaks, 1932), de Tod Browning, desumanizando seus colegas proletários. Na filmagem da peça, com a família toda de um dos escolhidos debaixo da chuva enquanto anoitece, os planos longos que exacerbam o ridículo da situação.

As relações de trabalho e a lógica de aplicativos ficam claras nos pequenos detalhes, como quando Angela leva a mãe ao cemitério, um espaço que deveria ser de luto e celebração de seus antepassados mortos. Mas aos fundos se vê um outdoor de aluguel de galpão para armazenamento, além de um entregador passando, de bicicleta, por entre as lápides, para cortar caminho até seu destino. A multinacional para quem Angela presta serviços é personalizada em Doris Goethe (Nina Hoss), uma marketeira blasé que não demonstra interesse no trabalho daqueles que lhe servem. As interações escancaram a exploração pelo capital e os processos de domínio econômico dentro da própria Europa. As complexas questões políticas são reduzidas ao seu aspecto financeiro. Falar da Rússia? Não pega bem, mas ainda temos clientes lá.

Jude é muito eficiente ao montar sua colagem de imagens de diversas mídias e meios, como o Tik Tok, o Zoom e o próprio cinema (com direito a comentários ácidos de Uwe Boll), com referências que passam pela literatura e pela filosofia. O resultado é uma farsa de proposta pós-moderna, que abraça o simulacro. Como a própria protagonista comenta, é a crítica pelo extremo, usando do exagero e da caricatura. A sensação é de constante ridículo e absurdo. Assistir a Não Espere Muito do Fim do Mundo é uma experiência frustrante. E claro que humor é algo muito pessoal, mas essa frustração, significativamente, é um retrato hilário do que vivemos hoje.

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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