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[47ª Mostra de São Paulo] Está Chovendo em Casa (2023)

Esta crítica faz parte da cobertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 19 de outubro e 1 de novembro.


Ainda na esteira de filmes da seleção da Mostra de São Paulo que estabelecem um diálogo não planejado, na semana passada houve a cabine de Vadio, uma película portuguesa sobre um adolescente de 13 anos abandonado pelo pai, que não tem condições financeiras de criá-lo. Nessa semana é a vez de Está Chovendo em Casa (Its Raining in the House, 2023), escrito e dirigido pela cineasta belga Paloma Sermon-Daï. Dessa vez, a obra retrata dois irmãos, Purdey (Purdey Lombet) e Makenzy (Makenzy Lombet), com’ 17 e 15 anos respectivamente, que são deixados sozinhos pela mãe, uma mulher com problemas de adicção, em uma situação de vulnerabilidade social.

A mãe dos garotos chega, mesmo, a sumir por semanas e eles não têm como saber quando e se ela volta, tendo que arrumar maneiras de sobreviver. Pursey, que queria ser enfermeira, desiste de seguir os estudos e começa a trabalhar como faxineira de um resort próximo à casa deles. A rotina é pesada e ela sonha em ter dinheiro para alugar um lugar na cidade em que ela e o irmão possam morar juntos. A casa de ambos, deixada pela avó, é precária e está em péssimas condições, especialmente pela falta de manutenção. Como o título indica, em dias de chuva, o quarto de Purdey fica inutilizável. Mak, por sua vez, aplica pequenos golpes em turistas e roupa bicicletas junto com um amigo.

Pensar a forma como esses dois filmes articulam uma pobreza em contexto europeu sob o ponto de vista das crianças é interessante. Sem acesso à assistência social e precisando arrumar formas de comprar comida e pagar as contas sozinhas, rapidamente é possível perceber de que forma as opções de futuro e de vida vão se tornando menos acessíveis. Purdey, por exemplo, é uma garota articulada, educada e inteligente. Ela apenas não tem dinheiro. Seu namorado, que tem boas condições financeiras (seu quarto tem até mesmo ar condicionado!) foi aceito em uma universidade de elite. Ele a critica por desistir de estudar e argumenta que no futuro ela não terá nada. A questão é que ela já não tem nada e precisa garantir o mínimo. A comparação com outros adolescente da mesma idade é exasperadora e é fácil entender o ressentimento e a raiva pela sua situação.

A obra jamais chega a propor uma saída e logo fica claro, até mesmo para os personagens, que nenhum agente externo os ajudará e sua situação. Nesse sentido, a agência dos garotos nas pequenas práticas é essencial, mesmo que fadada a nunca dar conta de tudo, afinal, são só garotos tendo que lidar com uma realidade difícil demais. E ainda assim a estética não abraça o sombrio: o verão em que a obra transcorre é solar e iluminado, assim como os figurinos coloridos, que evocam uma sensação de juventude e alegria, apesar da dureza. E como filme de crescimento que é, há espaço para outros temas para além do desamparo, como a sexualidade, que aparece tangencialmente em conversas entre personagens.

Um ponto forte, em específico, é a atuação dos irmãos, que é favorecida pela própria intimidade deles, também irmãos na vida real. O entrosamento e a naturalidade com que encarnam as interações entre os dois é essencial para a narrativa. Em entrevista, a diretora diz que se valeu das relações familiares anteriores para estabelecer essa dinâmica de gravação, visto que os jovens são filhos de seu irmão adotivo. Eles trabalharam por um ano para preparar a filmagem juntos. Essa facilidade de comunicação na convivência transparece na fluidez do resultado final, especialmente na interação dos personagens diante da câmera.

O filme trabalha dentro de uma lógica naturalista e minimalista, trazendo os dramas cotidianos dos adolescentes, retratados em pequenos momentos de suas vidas que explicitam as dificuldades e o modo como se organizam e se ajudam. O carinho com que se tratam é um alento e garante leveza em um retrato que poderia ser muito mais duro. Em Está Chovendo em Casa o afeto salva e a cineasta articula muito bem o encontro ingênuo dos talentos familiares.

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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