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[48ª Mostra de São Paulo] Abril (April)

Este texto faz parte da cobertura da 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 17 e 30 de outubro. Publicado originalmente na newsletter para assinantes do financiamento coletivo do Feito por Elas. Para contribuir, assine aqui.

Abril (April, França, Itália, Geórgia, 2024, Ficção, cor, 134 min)

Direção: Dea Kulumbegashvili

Sinopse: Nina é uma talentosa obstetra em uma maternidade no leste da Geórgia. Após um parto difícil, a criança morre, e o pai exige uma investigação sobre os métodos da médica. O escrutínio resultante ameaça trazer à tona a atividade paralela de Nina —dirigir pelo interior até as casas de meninas e mulheres grávidas para realizar abortos não autorizados— e destruir a profissão que é a única fonte de significado em sua vida. Vencedor do prêmio especial do júri no Festival de Veneza e do prêmio de melhor filme da competição Zabaltegi-Tabakalera do Festival de San Sebastián.

Comentário: Um exercício radical de contra-cinema. Um dos primeiros planos enquadra em plongée uma mulher deitada em uma mesa de parto, profissionais da saúde ao seu redor, a cabeça de um bebê coroando. Depois de alguns empurrões, a criança, azulada, é expelida e não chora. Descobrimos que nasceu prematura e a médica responsável pelo seu nascimento era justamente aquela acionada nos casos mais difíceis.

Há uma constante negação do que se espera em termos de linguagem. A câmera quase não se movimenta, permanecendo parada, na mão, apenas com o tremor natural, de forma que o campo e o fora de campo muitas vezes cria sentidos a partir daí. São poucos cortes: os planos longuíssimos se estendem ao máximo, com o barulho incômodo do relógio que os acompanha de tempos em tempos.

É assim que o filme mostra o aborto de uma personagem surda. Estuprada dentro de casa, sua irmã pede ajuda à médica. A câmera é posicionada estética de frente para a mesa de jantar onde a jovem é desconfortavelmente deitada. Vemos sua barriga desnuda e vislumbramos a ação da médica e as mãos de sua irmã a acalmando. São cerca de 10 intermináveis minutos em que vemos o movimento do seu ventre e ouvimos seus gemidos, incapaz que ela é de proferir uma palavra para falar de sua dor.

Reparar na reação da plateia, desviando o olhar ou se mexendo nervosamente na cadeira é quase como parte do filme. O desconforto é proposital: se a lei fosse diferente, ela não precisaria passar por tudo isso. Teria acesso a tecnologia mais eficiente e estrutura hospitalar mais gentil.

Não há contraplanos. Ou os ambientes são capturados em planos abertos, também estáticos, que abarcam todos os personagens, ou os diálogos são registrados em câmera subjetiva. Dessa forma, em algumas conversas só vemos a reação da médica e outras apenas daqueles que falam com ela. Na vila retratada, mulheres não têm direito a desejo sexual, nem a escolher adiar casamento ou filhos. Não tem direito a aborto, nem em caso de estupro, mas, caso desejem se tornar mães e algo saia do roteiro, também são tratadas com descaso.

Abril é primavera no hemisfério norte. Os bezerros nascem, o campo floresce, a chuva fustiga a futura lavoura. Só o que não se renova são as perspectivas das mulheres dessa aldeia. Desagradável, intrigante, desesperador, frustrante. Como deve ser.

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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