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[49ª Mostra de São Paulo] Springsteen: Salve-me do Desconhecido

Esse texto faz parte da cobertura da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 16 e 30 de outubro.


Em setembro de 1982, o top 100 da Billboard era liderado por “Eye of The Tiger”, canção da banda Survivor que virou símbolo da franquia Rocky Balboa. Músicas mais enérgicas de artistas como Olivia Newton-John, Donna Summer e Laura Branigan dividiam espaço com baladas melosas de bandas lideradas por homens e que, até hoje, tocam por aí naquelas rádios especializadas em “love songs”. Estávamos a dois meses do lançamento de Thriller, obra de Michael Jackson que se tornaria o álbum pop definitivo. No meio disso tudo, um Bruce Springsteen mergulhado em depressão lançava Nebraska, disco carregado de sua conhecida contação de histórias e que, sem vontade nenhuma de ter promoção por parte do artista, parecia fadado ao fracasso.

À época, tínhamos David Bowie, Freddie Mercury, Tina Turner, Steve Perry e Stevie Nicks entre os principais nomes do rock. Nesse cenário de grandiosidade, a recusa de Springsteen em ser um artista de escala monumental o colocava à parte (antes da sessão, conversava com amigos da crítica sobre como ele nunca foi um artista gigante no Brasil, por exemplo). É daí que parte a cinebiografia Springsteen: Salve-me do Desconhecido (Springsteen: Deliver Me from Nowhere, 2025). Dirigido por Scott Cooper, o filme foge da estrutura tradicional de ascensão-queda-apoteose que costuma condensar a vida de um artista em duas horas. A exemplo de Um Completo Desconhecido (A Complete Unknown, 2024), de James Mangold, que se concentra em um recorte específico da trajetória de Bob Dylan, aqui também acompanhamos um período delimitado – no caso, o processo de composição de Nebraska – como ponto de partida para explorar os demônios de um homem que carregava feridas profundas do passado.

Confesso que não sabia o que esperar do filme, mas me surpreendeu como ele equilibra Springsteen (Jeremy Allen White), do ícone da classe trabalhadora dos anos Carter e Reagan, ao anti-rockstar “feliz no simples”, passando pelo homem que se expressava pela música porque tinha dificuldade de fazê-lo na vida real.

A escolha de focar na criação de Nebraska poderia limitar a narrativa (se pararmos para pensar, há poucos números musicais no filme), mas a opção por um protagonista mais internalizado acaba funcionando bem. Ao mesmo tempo, os flashbacks em preto e branco, que pretendem iluminar os traumas de infância de Bruce, acabam inchando a narrativa e interrompendo o que o filme tem de melhor, que é o desenvolvimento do personagem no presente. Essa escolha, soa menos orgânica, especialmente quando lembramos de Better Man – A História de Robbie Williams (Better Man, 2024), cuja abordagem semelhante sobre paternidade tem uma resolução cinematográfica mais interessante.

A luta de Bruce para se manter genuíno em meio às tentações do sucesso rende algumas crises existenciais bem exploradas, como a compra de um carro com toca-fitas ou o medo de sair de Nova Jersey. Um dos melhores momentos é quando ele troca de canal rapidamente ao se deparar com a recém-nascida MTV e, por acaso, para em Badlands (1973), de Terrence Malick. O processo criativo inspirado no filme de Malick dá a exata dimensão do que atormenta Bruce de forma mais sensível do que os flashbacks ou os diálogos expositivos com o personagem vivido por Jeremy Strong.

Springsteen: Salve-Me do Desconhecido é o retrato de um artista assombrado pela síndrome do impostor e por relações fraturadas em um ambiente familiar que não permitia aos homens a sensibilidade artística. Para conhecer Springsteen de fato, nada melhor que a obra dele (Nebraska, em especial, merece atenção), mas Scott Cooper faz um trabalho competente ao traduzir em imagens (mesmo as mais explicativas) as angústias de um artista que se recusava em ser o que a indústria queria dele.


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo. Agradecemos em especial a: Carlos Henrique Penteado, Gizelle Barros Costa Iida, Helga Dornelas, Henrique Barbosa, João Bosco Soares, Janice Eleotéreo, José Gabriel Faria Braga de Carvalho, José Ivan dos Santos Filho, Lorena Dourado Oliveira, Lucas Ferraroni, Marden Machado, Mariana Silveira, Nayara Lopes, Patrícia de Souza Borges, Pedro Dal Bó, Vinicius Mendes da Cunha, Waldemar Dalenogare Neto, Zelia Camila de O. Saldanha

Crítica de cinema, membra da Abraccine, amazonense, 30+, ama novela mexicana

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