Cinema,  Críticas e indicações,  Filmes

[57ª Festival de Brasília] Enquanto o Céu Não Me Espera

Este texto faz parte da cobertura da 57ª Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, que ocorre entre 30 de novembro e 7 de dezembro.

O filme dirigido por Christiane Garcia é apresentado como sendo o primeiro longa de ficção realizado por uma mulher no Amazonas. Só isso já seria digno de nota, além do próprio contexto de produção deixa claro as dificuldades superadas para a realização da obra. Mas ela tem seu méritos para além do ineditismo e esforço de realização. Na trama, Vicente, vivido por Irandhir Santos, é agricultor que planta juta e que ganha muito pouco com cada safra, invariavelmente prejudicada pela chuva. Foi o que aconteceu com a última colheita, deixando ele e sua família quase sem recursos. Ele vive em uma casa de palafitas com sua esposa Rita (Priscilla Vilela) e seus três filhos, um adolescente (Maycon Douglas), uma menina (Jully Fabielly) e o caçula (Cauãn Eduardo). A moradia, nessa cheia, é tomada pelo rio.

O ambiente apequena as pessoas, rodeados pela imensidão da água, que é a maior antagonista. A chuva açoita o local como só a chuva do norte sabe fazer, fazendo o nível do Rio Negro subir e mais um plantio se perder. As crianças não vão à escola e o pequeno está adoentado. O desenho de som trabalha o sonido que vem da mata e, o que chama especialmente atenção, os diferentes ruídos de água e o barulho quase incessante das redes rangendo. O tamborilar da chuva chega a remeter a agonia de Vento e Areia (The Wind, 1928), de Victor Sjöström, em que o soprar do vento contra a casa é desesperador. A natureza leva à loucura, expressa a angústia interna dos protagonistas.

De certa forma é difícil fugir, também, da comparação com histórias de dramas familiares em contextos de clima extremo. “Vidas Molhadas“, pensei durante a exibição, com o perdão do trocadilho infame. Mas é um retrato de Brasil que tem suas particularidades geográficas, da região de Manacapuru, onde ocorreram as filmagens, mas que fala das agruras de todo interior muitas vezes desassistido pelas capitais. A escadinha de crianças e as distâncias que precisam ser transcorridas, nesse caso de barco, ampliam um senso de abandono de pessoas que gostariam de permanecer com seus modos de vida tradicionais (ou então deixá-lo, mas fazê-lo com a acolhida necessária). Na casa sem televisão e sem celulares, onde o mundo exterior chega pelo rádio à pilha, cria-se um retrato atemporal, que não se localiza em um momento específico.

Quando o filho mais velho morre, quase sem nenhuma antecipação, Priscilla Vilella encarna, em um plano sequência, a dor rasgada. A seriedade da protagonista é desafiada por um luto que não tem amparo, virando tortura. Uma súbita conversão a uma igreja evangélica me parece um dos pontos mais frágeis da narrativa, porque vem sem uma construção que desse corpo a essa virada. A expansão do neopentecostalismo nos interiores amazônicos realmente é uma questão, mas raramente o fenômeno religioso, mesmo em outros contextos, escapa retratos estereotipados. Parece que o cinema brasileiro busca e não dá conta de entender o tema. (Talvez a tentativa mais interessante, embora ainda hesitante em certos aspectos e em contexto bastante diverso, na política, seja Apocalipse nos Trópicos, de Petra Costa). A luta diária de Rita é cozinhar com o pouco que Vicente traz pra casa, querer ir embora e, afinal, ser obrigada a partir, separada dos filhos, por causa da nova religião. É um desfecho cruel para uma pessoa que estava tentando manter uma vida coesa em um contexto difícil, num filme com forte protagonismo masculino, em que há pouco espaço para que ela expresse além da dor.

Já Irandhir Santos precisa construir um pai que encarna uma masculinidade em crise, que precisa prover, suportar tudo e nunca desistir. Em certo momento ele é o único acordado em vigília na casa e balança, de foram revezada, as redes de todos os demais que dormem. Existe um afinco dele em não abrir mão daquele espaço. Nesse caso, também, porque desistir seria dar adeus ao modo de vida de seus pais, a quem ele significativamente agarra na forma de um retrato. Há algo de animalesco na que perpassa a representação, que culmina em uma cena de sexo violenta na lama, que ignora o prazer de Rita em um gozo egoísta e solitário. Talvez por isso o filme evoque para mim as últimas frases do romance naturalista Germinal, de Émile Zola:

Por todos os lados as sementes cresciam, alongavam-se furavam a planície, em seu caminho para o calor e a luz. Um transbordamento de seiva escorria sussurrante, o ruído dos germes expandia-se num grande beijo. E ainda, cada vez mais distintamente como se estivessem mais próximos da superfície, os companheiros cavavam. Sob os raios chamejantes do astro rei, naquela manhã de juventude, era daquele rumor que o campo estava cheio. Homens brotavam, um exército negro, vingador, que germinava lentamente nos sulcos da terra, crescendo para as colheitas do século futuro, cuja germinação não tardaria em fazer rebentar a terra”.

Detalhes como o mencionado retrato são mostras do trabalho de direção de arte, que acerta na construção da casa que gradativamente afunda na água, com todos os objetos cênicos que ajudam a compor uma vida familiar. E nesse processo, a fisicalidade dos atores também é desafiada. É inútil tentar imaginar como devem ter sido as horas e dias de trabalho debaixo da água, com a pele engelhando enquanto são devorados pela água. Pergunto-me porque os personagens não construíram uma maromba, nome dado a pisos internos, muito comuns no Amazonas, que se fazem em casas de palafitas quando a água chega ao nível do piso original. A chave deve estar nessa permanência. Uma maromba atenuaria a vida durante a cheia e Vicente se comporta no limiar do absurdo ao ponto de parecer que o desfecho do filme flerta com o fantástico. Mas as imagens de arquivo que encerram a narrativa como um reflexo das escolhas do personagem mostram que às vezes a realidade é mesmo absurda.

O Rio Negro desafia a nossa capacidade de entender a dimensão de um corpo fluvial. De tempos em tempos é comum que ele mostre sua força. Com mudanças climáticas cada vez mais intensas, é de se imaginar que histórias como as que o filme retrata se tornem progressivamente mais comuns. A violência das intempéries resulta em pessoas que viviam como seus pais e seus avós sendo arrancadas de seus territórios ou obrigadas a permanecer e aceitar. Nesse sentido a teimosia de Vicente se justifica, ainda que para um olhar externo possa não fazer sentido. Enquanto o Céu Não Me Espera retrata com muita beleza o contexto amazônico em um cinema que dá vazão para diferentes dores.

Compartilhe
Share

Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *