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[78º Festival de Cannes] Alpha

Este texto faz parte da cobertura do 78ª Festival de Cinema de Cannes, que ocorre entre 13 e 24 de maio.


Algumas glórias podem, facilmente, transformar-se em maldição. Julia Ducournau, integrante do seleto grupo de três mulheres vencedoras da Palma de Ouro (ao lado de Justine Triet, por Anatomia de Uma Queda, e Jane Campion, por O Piano), premiada por Titane, pode ter se tornado uma vítima do pódio das expectativas – e é inegável que o fato de ser mulher eleva, ainda mais, a pressão pela excelência. Mulheres fazem parte de uma minoria que, numa comparação pelo gênero, precisam caminhar muito mais longa e arduamente uma jornada mais obstaculizada na corrida social das oportunidades. Alpha, seu novo filme e novo concorrente do prêmio maior do Festival de Cannes 2025, causou reações das mais contraditórias entre os críticos e jornalistas do mundo todo. Fato é que o cinema visceral e corporal da diretora segue incomodando pelas sensações que causa.

À beira de colapsos, a inconsequência pode falar mais alto – o fim do mundo pode justificar a ânsia e o desespero pela vida. É justamente no fim do mundo que Alpha nos localiza. O ar que se respira é empoeirado, notoriamente tóxico, alaranjado, denso. Os hospitais estão sobrecarregados pela existência de um vírus e escolhem-se os pacientes mais necessitados para ocupação dos leitos. O vírus é mortal, altamente transmissível através do contato com o sangue contaminado. A doença transforma o enfermo numa espécie porosa, semelhante a uma pedra, cuja pele se esfarela conforme o agravamento da condição.

Nesse cenário, perfeito caos e tragédia para que a diretora imprima suas características, Alpha (Mélissa Boros) é uma garota de 13 anos, que de modo impulsivo, faz uma tatuagem com a inicial de seu nome, expondo-se ao risco da doença, e dando motivos para que sua mãe, interpretada por Golshifteh Farahani, médica da linha de frente de um hospital superlotado, entre em paranoia a respeito da contaminação da filha e o medo de perdê-la, ao mesmo tempo que lida com o ressurgimento do irmão Amin (Tahar Rahim), dependente químico contaminado e em evidente declínio corporal.

O cinema aflitivo, angustiante e nauseante de Ducournau, em Alpha, encontra espaço para se desenvolver muito diretamente através de sua temática – com a doença comprometedora de fora para dentro e os vícios inerentes à atmosfera apocalíptica, vêm as agulhas, os hospitais, as feridas, a pele petrificada, as drogas, o sexo, a morte. Os doentes tossem poeira, suas peles se tornam como o chão desértico que craquela. Essa construção é suficiente para que olhos evitem a imagem em muitos momentos, e para que pessoas sejam carregadas para fora das salas de cinema de maca (aconteceu no Festival de Cannes).

As sensações controversas, emblemáticas, são, justamente, o mote da diretora. Ela deseja tanto atrair como afastar nosso olhar, e buscar essas especificidades sensoriais é o que a diferencia e o que alimenta a expectativa de seus filmes – o que é, portanto, sua maior qualidade. Tal como Titane, Alpha vai equilibrar o aspecto mais físico da imagem à certa sensibilidade melancólica decorrente das relações humanas e familiares mais complicadas.

O trio mãe/irmã, filha/sobrinha e tio/irmão estabelece os momentos de conflito e os pontos de emoção. O ofício da mãe vai transferir o intuito de cuidado à família, e mostra-se difícil o equilíbrio entre a frieza da profissão e a tomada de algumas decisões que lhe doem diretamente em razão do laço afetivo. Sua relação com o irmão é, ainda, mais complexa do que a mantida com a filha, já que como médica que compreende o contexto de sua situação e dependência química, e ela se vê oscilando entre contribuir para a dignidade mínima à existência do irmão, ainda que isso signifique facilitar seu vício, e a insistência em salvá-lo.

Inicialmente uma figura indesejada e que traz ansiedade, é com o irmão que Julia Ducournau consegue extrair sequências muito marcantes e que nos comovem com o mesmo sentimento de compreensão da dependência química que a personagem de Golshifteh Farahani nutre. Em uma delas, o tio leva a sobrinha para uma casa noturna, permitindo que ele se alcoolize e viva aquela experiência insana mesmo muito nova. A sequência se estende na mesma duração da canção que ouvimos, e nos vemos condenando e acolhendo na mesma medida a atitude dos personagens. Noutra, traz-se à tona a necessidade de deixar a pessoa amada seguir o rumo que deseja, ainda que isso signifique sofrimento para todos os lados – a compreensão e o amor atingindo um patamar elevado, mas não menos melancólico e complexo.

Levantaram-se muitas discussões a respeito da necessidade de introduzir uma personagem adolescente em experiências que, numa normalidade social, não fazem e não devem fazer parte de tua realidade, inclusive, o sexo. Talvez aqui a diretora tenha perdido um pouco a mão e a dose, tornando-se um pouco exploratória. Mas Alpha não integra um contexto fílmico de normalidade – no fim do mundo, busca-se sobreviver e viver aquilo que é possível.


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo e patrocínio. Agradecemos em especial a: Ana Carolina Ballan Sebe, Caio Pimenta, Eduardo Filho, Lucas Ferraroni, Maria Eliana Pilon, Renata Boldrini, Thiago Bocanera Monteiro, Tiago Maia e Wellington Almeida;

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Advogada, crítica de cinema, editora e cofundadora do Coletivo Crítico. Membra do Júri da Latin American Critics Awards for European films.

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