
[78º Festival de Cannes] Die, My Love
Este texto faz parte da cobertura do 78ª Festival de Cinema de Cannes, que ocorre entre 13 e 24 de maio.
A associação que se faz entre mulheres e figuras selvagens, animalescas, acompanha milênios de expressões artísticas, religiosas e culturais, construindo arquétipos que perpassam tempos, lugares e gerações, e que podem, a depender da representação e contexto, trazer perspectivas tanto positivas como negativas. Um exemplo que, na contemporaneidade, vem se destacando e contribuindo para o empoderamento e autoconhecimento feminino é o livro Mulheres que Correm com Lobos, escrito pela psicanalista americana Clarissa Pinkola Estés, que vai, em brevíssima síntese, estimular, perpassando por contos universais, a liberdade da mulher como ser livre próximo aos lobos. Na obra de Estés, há o reconhecimento do aprisionamento de mulheres através da heteronormatividade, que dita regras a ponto de impedir o crescimento pleno feminino, sendo seu objetivo, através da psicanálise, rememorar o que seria o instinto da mulher selvagem que é socialmente podado, para o alcance de personalidades conscientes de sua própria origem e de si mesmas.
Die, My Love, longa de Lynne Ramsay que estreia na Competição do 78º Festival de Cannes, de certa maneira, atrai para si um primitivismo feminino em sua protagonista, a personagem de Grace (Jennifer Lawrence), cujo comportamento felino vai, a princípio, fazê-la uma personagem de liberdades bem definidas, que atende aos desejos instintivos de selvageria em seu melhor sentido. É na maternidade que ela vai encontrar desafios aos limites de sua personalidade livre, a partir do momento em que deixa de dedicar-se a si mesma para responsabilizar-se não só pela pessoa que gerou, mas também para atender as expectativas alheias do que seria, idealmente, a figura da mãe ideal. Ela deixa de trabalhar, deixa de realizar as atividades que lhe eram caras, como a escrita, para tornar-se mãe com exclusividade, enquanto seu companheiro, Jackson (Robert Pattinson), assume a função masculina provedora do lar. A atribuição dessas funções bem estabelecidas socialmente vai desequilibrar a relação, desequilíbrio que culminará com a depressão pós-parto que Grace se verá enfrentando.
Se Die, My Love, se inicia com a imagem de um incêndio, cuja representação não sabemos se será figurativa ou literal no universo fílmico, é notório que o paralelo que Lynne Ramsay faz entre Grace e o fogo intenta escalonar o desenvolvimento de sua maternidade. Entretanto, é justamente nesse evidente escalonamento de acontecimentos que a diretora vai desviar-se da subida para construir uma obra constante, que caminha em círculos, ameaçando elevar-se em muitos momentos, sem sair do lugar.
Há uma linha tênue entre a representação de uma mulher como aquilo que conhecemos negativamente como “louca” ou que atue com traços de desvirtuamento psicológico justificável. Lynne Ramsay parece respeitar e compreender essa barreira, não a ultrapassando para transformar Grace em um ser despropositadamente distanciada da serenidade. Trata-se de uma mulher evidentemente deslocada e perdida de seu propósito selvagem tal qual Mulheres que Correm Com Lobos. Ela ama ser mãe, ama seu filho, mas vê-se obrigada a desempenhar um papel doméstico que não lhe diz respeito, que luta para reencontrar sua autoestima e sentir-se desejada pelo marido, e por esse motivo, entrega-se a seu lado instintivo de maneira tóxica, autodepreciativa e autopunitiva.
É justamente nos momentos de autodepreciação e autopunição da protagonista, como, a título exemplificativo e evitando-se os spoilers, ela impacta sua cabeça contra um vidro, que Die, My Love encontra seus sub-escalonamentos para atingir alguns de seus ápices e melhores momentos, muito por conta do incômodo gerado pelo memorável trabalho de som do filme. A desestabilização de Grace é extremamente sonora, seja nas músicas em tom exagerado que o casal vai ouvir nos momentos de harmonia, e que depois se tornarão insuportáveis à protagonista (sinal evidente de perda de seu equilíbrio), seja nos símbolos da violência que ela vai se inserindo – vidros quebrados, o bebê que chora, uma moto que circula no meio da madrugada, um tiro. A sonoridade é utilizada, ainda, para ressaltar a personalidade felina da personagem, que, arrastando-se como tal, chega a ronronar.
Para alcançar seus pontos altos, portanto, o filme acaba dependendo do trabalho de som e de atuação que engajam algumas inesperadas atitudes dessa mãe em formação que evidenciam seu estado depressivo do que de um trabalho coletivo, causando o efeito “susto”, sem, de fato, surpreender. Falando em atuações, a reunião de Lawrence com Pattinson e vislumbrá-los perante nomes como a lenda Sissy Spacek, que interpreta a mãe de Jackson, Nick Nolte e LaKeith Stanfield é um deleite.
Die, My Love mantém-se na constância da atmosfera de desespero pela protagonista, incompreendida em suas atitudes e necessidades, isolando-se cada vez mais, e esforçando-se para manter-se socialmente aprazível (Uma Mulher sob Influência acena levemente em alguns momentos). No entanto, é fato que a fórmula da surpresa reativa, por sua utilização em círculos por Lynne Ramsay, finda por, por sua excessividade, não mais atingir seu objetivo, mantendo a obra em um ritmo regular em que pesem as promessas de ascensão.


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo e patrocínio. Agradecemos em especial a: Ana Carolina Ballan Sebe, Caio Pimenta, Eduardo Filho, Lucas Ferraroni, Maria Eliana Pilon, Renata Boldrini, Thiago Bocanera Monteiro, Tiago Maia e Wellington Almeida;
e


