
[78º Festival de Cannes] Eddington
Este texto faz parte da cobertura do 78ª Festival de Cinema de Cannes, que ocorre entre 13 e 24 de maio.
Que a maior economia do mundo se transformou em um gigantesco surto coletivo muito bem financiado, não é novidade alguma. São, entretanto, os discursos mais óbvios os que precisam ser repetidos à exaustão para que alguma reflexão qualificada possa se formar. Talvez essa tenha sido a proposta de Eddington, novo filme de Ari Aster (Midsommar, Beau Tem Medo): inserir, num microcosmo de cidade estadunidense fantasma e desértica no início da Covid-19, o maior número de razões possíveis que demonstrem a existência desse surto coletivo, e agregar o maior número de assuntos polêmicos para conferir estofo à discussão. Ari Aster, entretanto, passa muito longe do discurso qualificado. Seu candidato à Palma de Ouro em 2025 é uma exaustiva, pretensiosa e inflada tentativa de obra-prima, proveniente da clássica certeza absoluta do homem branco de sua própria genialidade.
Eddington é uma cidade real, de aproximadamente 2 mil habitantes, localizada no estado do Maine, nos Estados Unidos. Aster vai concentrar os acontecimentos de seu filme em maio de 2020, quando pairava a chegada da Covid-19, pessoas desacreditavam a respeito da existência do “vírus chinês”, fake news circulavam em abundância tornando duvidosa toda e qualquer informação recebida.
A rivalidade entre o xerife local, Joe Cross (Joaquin Phoenix) e o prefeito Ted Garcia (Pedro Pascal) se forma a partir da discussão sobre uma suposta divergência entre a obrigatoriedade do uso de máscara e a liberdade de escolha em não fazê-lo. O estopim de uma relação já inflamada se dá quando Cross anuncia que será candidato a prefeito na próxima eleição, e um confronto imaturo entre eles, baseado em vídeos de Instagram e TikTok, carros de som e manipulação vai tomando proporções maiores no decorrer da narrativa, buscando fazer valer o título de “faroeste político” que lhe foi atribuído.
Pandemia, fake news, militarismo, patriotismo, isolamento, religião, racismo, higienização social, supremacia branca, estupro, protestos políticos, movimento antifascista, xenofobia. Essa gama de temáticas integra Eddington numa abordagem irônica e desconfortavelmente bem humorada. Muito embora a ironia funcione para sustentar a autocrítica do diretor estadunidense, consciente de sua inserção nesse modelo social doentio que ele tem como nação, seu excesso nessa salada política torna arriscada e palpável a provocação de efeito rebote.
Ari Aster, em sendo um homem branco consciente, desejoso de trazer para Eddington a hipocrisia de seu privilégio na luta antirracista, até caminha por trajetos mais seguros ao não tentar ser definitivo e escancarar o ridículo da perspectiva de sua própria raça. De modo estratégico, o diretor posiciona temporalmente sua obra em maio de 2020, quando George Floyd foi brutalmente assassinado por policiais, para introduzir na trama protestos a favor da bandeira Black Lives Matter.
Esses protestos são conduzidos, entretanto, por uma juventude branca, que exige, aos berros surtados, que, ao que parece ser a única pessoa negra da cidade (veja só, um policial, Aster grita a ironia) se posicione. Mais uma vez, em que pesem as boas intenções e o deboche político, temos pessoas brancas dizendo às pessoas negras o que devem fazer e como devem agir. Quando um crime ocorre, é esperado que o diretor insista na ironia para trazer a esse personagem singular consequências injustas. Nada seria problemático, não fosse a rápida e despreocupada pincelada que o diretor confere à temática e o que parecia ser uma crítica aos privilegiados torna-se mais um reforço de estereótipos racistas.
É com semelhante desinteresse que Aster vai conduzir cada um dos núcleos de Eddington que não envolva diretamente o personagem de Joaquin Phoenix. Via de consequência, além do desgaste político, há um desperdício de talentos que não encontram texto nem espaço para atuar para além do reforço de insanidade generalizada – Emma Stone, Austin Butler e até mesmo Pedro Pascal soam tão indiferentes ao papel quanto o diretor para a luta antirracista.
Muito embora o diretor saiba conduzir as sequências de ação que vão representar o apogeu da loucura que tomou conta dessa mini cidade representativa de todo um país, tal qual um western decente em seu propósito, e ainda que nos sintamos desconfortáveis ao reviver aspectos psicologicamente doentios que a sociedade a nível global passou a se ver tranquila em revelar-se cada vez mais egoísta no mundo pós-pandêmico, Eddington empaca num discurso vazio, um presente de um estadunidense para outros estadunidenses que, como seu diretor, lidam com essa atmosfera enlouquecida sem saber muito bem o que fazer a respeito.


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo e patrocínio. Agradecemos em especial a: Ana Carolina Ballan Sebe, Caio Pimenta, Eduardo Filho, Lucas Ferraroni, Maria Eliana Pilon, Renata Boldrini, Thiago Bocanera Monteiro, Tiago Maia e Wellington Almeida;
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