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[78º Festival de Cannes] La Ola

Este texto faz parte da cobertura do 78ª Festival de Cinema de Cannes, que ocorre entre 13 e 24 de maio.


Sebastián Lélio, vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional pelo fabuloso Uma Mulher Fantástica, levar um musical para sua premiére no 78º Festival de Cannes é um acontecimento que fez lotar a sala Debussy em expectativa. Pessoalmente, gosto muito do cinema do diretor chileno, mas apesar disso, procuro não alimentar anseios ou pré-julgamentos a respeito dos filmes que assisto, e por essa mesma razão, dificilmente leio sinopses ou fico na caçada de trailers. Não trata-se de nenhuma mania ou fobia de spoilers, apenas tento, na medida do possível, gozar de uma experiência cinematográfica, digamos, menos intermediada e mais limpa (algo que, pessoalmente, me ajuda).

Confesso que não sabia que La Ola seria um musical e até fiquei bem animada quando do início do número introdutório. Desconhecia, ainda, que ele fosse inspirado em acontecimentos reais, relacionados a protestos ocorridos na Universidade do Chile contra acusações de assédio sexual e estupro de alunas. A união do gênero à temática soou e é promissora.

Acontece que, no transcorrer fílmico, me vi cada vez mais indignada e ao final da projeção, o sentimento era de revolta e profunda irritação. Em que pese o esforço, é evidente que, como seres humanos, expectativas nos são inerentes e nem sempre há meios de evitá-las. Aqui, não é que esperasse, ainda que de forma inconsciente, por uma obra excepcional. Mas jamais conjecturei, diante do histórico e habilidade do diretor em trabalhar com obras protagonizadas por mulheres e com temáticas muito femininas, que seu novo filme pudesse me desapontar por ser ofensivo.

La Ola é um filme que se esforça para endossar um discurso feminista, mas só consegue enfraquecer a causa e transformar tudo em obviedade e gritaria. A sequência musical inicial, que mostra o brado de mulheres que extraem, da exaustão e da indignação, forças para ocupar espaços e se tornarem guerreiras defensoras de si e de suas pares, de fato, exala a potência, o poder e o magnetismo da ação feminina conjunta. Ao menos ali, no contexto narrativo, são estudantes de artes, e Lélio explora a habilidade da voz para o canto para transportá-la na (suposta) força para que vítimas sejam ouvidas. Nesse princípio, a admirável e enérgica coreografia, dezenas de mulheres num pátio escolar num discurso uníssono, é envolvente o suficiente para que pensemos que, sim, aparentemente o diretor acertou novamente.

A introdução é uma mera vitrine. O discurso que demanda que mulheres usem suas vozes, se torna óbvio, repetitivo e barato. O longa escolhe sair da coletividade dos protestos e da brava luta empreendida pelas estudantes, que ocuparam a universidade em exigência de posicionamento e punição, para focar num caso ficcional de uma estudante do curso de música, Julia (Daniela López). A decisão de se dedicar a uma única estudante não só muda o tom do filme, mas torna-a vitima de todas as atrocidades possíveis, de modo que é uma tortura vê-la sofrer e ser perseguida pela burocracia e pelos julgamentos sociais que pendem sobre o assunto. 

La Ola busca manter um tom crítico debochado que, em muitos momentos, me lembrou a catástrofe Emília Perez, na medida em que ultrapassa limites semelhantes da ironia ao abordar, com certo bom humor e sarcasmo, assuntos geradores de traumas graves o suficiente para serem carregados por toda uma vida. No caso de Emília Perez, penso no mal gosto e insensibilidade inequívocos da canção La Vaginoplastia.

Aqui, a mesma desumanidade paira numa sequência dedicada a demonstrar as dificuldades burocráticas opressoras e exaustivas sofridas por mulheres vítimas de estupro que têm seus depoimentos desacreditados não só pelas autoridades, mas pela sociedade em geral. Lélio transforma a protagonista Júlia numa espécie de boneca, levada de um lado para outro por pessoas e situações, reforçando, ainda mais, a fragilidade de sua posição de vítima. O faz abusando da ironia, com um humor desrespeitoso, que causa, para além do forte incômodo, verdadeiro desespero. 

Se, como mulher, assistir a tamanha indelicadeza e afronta já foi demasiadamente árduo, fico imaginando as dores de minhas companheiras vítimas de estupro perante a abordagem de La Ola. Todas nós, em maior ou menor grau, já sofremos violências das mais diversas espécies, em maior ou menor grau. Quando crimes, enfrenta-se um sistema investigativo e jurídico desumano, massacrante, que até que (e se) faça valer a punição devida, induz a vítima a reviver o trauma em ciclos, e repensar até que ponto a denúncia vale a pena.

Do ponto de vista social, La Ola claramente escolhe recortar uma parcela privilegiada de mulheres para transportar seu (gritado, óbvio, desrespeitoso) discurso – mulheres latinas brancas, de classe média, jovens, de beleza padronizada e socialmente aceita, são as únicas guerreiras dessa luta coletiva que nunca foi. 

Se a ideia de Sebástian Lélio era criticar um sistema que não acolhe vítimas de violência sexual, é lamentável e entristece sobremaneira que o filme finda por fazer o mesmo. La Ola endossa e abraça a indiferença às mulheres que se veem obrigadas a se submeter às barbáries burocráticas. Criando, ao menos (contém ironia, veja-se), brados de um discurso enfraquecido que, recortados e isolados, no contexto do gênero musical, podem render bons reels e viralizações nos aplicativos de vídeo dos mais diversos. Talvez tenha sido esse mesmo seu propósito já que o próprio diretor precisa roubar a cena durante o filme para desculpar-se por ser um homem a realizar uma obra sobre mulheres. A que custo? Ao da nossa exaustão. 

Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo e patrocínio. Agradecemos em especial a: Ana Carolina Ballan Sebe, Caio Pimenta, Eduardo Filho, Lucas Ferraroni, Maria Eliana Pilon, Renata Boldrini, Thiago Bocanera Monteiro, Tiago Maia e Wellington Almeida;

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Advogada, crítica de cinema, editora e cofundadora do Coletivo Crítico. Membra do Júri da Latin American Critics Awards for European films.

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