Cinema,  Críticas e indicações,  Filmes

[78º Festival de Cannes] La Petite Dernière

Este texto faz parte da cobertura do 78ª Festival de Cinema de Cannes, que ocorre entre 13 e 24 de maio.


A luta pela afirmação de identidades nos parece ter sido a temática recorrente das obras da competição do 78º Festival de Cannes. O Agente Secreto, Romería, Die, My Love, e aqui, La Petite Dernière (The Little Sister), dirigido pela franco-tunisiana Hafsia Herzi. Filmes, de algum modo, primos, que trabalham a jornada de autopreservação como fio condutor narrativo, em buscas específicas e individuais que se traduzem em uma pretensão mais ampla, que é a da garantia do direito fundamental mais básico pela existência digna. A trajetória, nem sempre, é exitosa. Há um esforço social pela obstaculização da existência segura de algumas pessoas, pertencentes a determinados grupos considerados, a depender do local e do contexto político-religioso, um risco à estabilidade do grupo dominante. Em O Agente Secreto, o protagonista é uma figura de importância que se impõe contra o regime militar e o sistema da industrialização universitária, e por isso, é perseguido. Em Die, My Love, a personagem de Jennifer Lawrence incomoda por não se encaixar no ângulo materno e doméstico padrão. Romería traz uma jovem relegada pela família por ser filha de dependentes químicos portadores de HIV. 

Em La Petite Dernière, Fatima (Nadia Melliti, vencedora do prêmio de melhor atriz em sua primeira atuação) é uma garota de 17 anos prestes a ingressar na Universidade de Paris. De família franco-algeriana e fiel ao Islã, a mais nova de três irmãs percebe-se muito diferente do padrão de feminilidade tanto presente no seu seio familiar, como na escola, e, muito embora tenha um namorado, vê-se atraída por mulheres. Numa jornada de amadurecimento iniciada pela libertação universitária, Fatima esforça-se para se compreender melhor dentro daquele contexto social, buscando articular o que parece inconciliável: a fidelidade a si mesma, o convívio familiar e a sua fé islâmica.

O percurso de Fatima, apesar de repleto de particularidades, de forma geral, não é diferente de muitas obras presentes no cinema queer, o que não é, absolutamente, um ponto que lhe seja negativo, uma vez que a comunidade LGBTQIA+ é alvo de perseguições e sofrimentos semelhantes ao redor do globo, em maior ou menor grau. Em sendo o mundo um mar infinito de pessoas (ainda que tenhamos um número populacional fechado, ele renova-se a cada indivíduo que nasce e morre), há, portanto, infinitas possibilidades de representação e representatividade – e, sim, todas elas são importantes.

Podemos, em determinados momentos, ter a impressão de que já assistimos a obras semelhantes à La Petite Dernière, por trabalhar sua forma através do círculo de amadurecimento e descoberta mais clássico. No entanto, ao pensarmos na gama de mulheres vinculadas e oprimidas pelo Islã e sua proibição aos relacionamentos homoafetivos, a história de Fatima mostra-se uma luz acalentadora e que reforça outras existências esquecidas – no presente caso, o das mulheres de origem algeriana fieis ao Islã.

Nesse contexto, Hafsia Herzi constroi sua protagonista muito próxima ao estereótipo da mulher lésbica masculinizada. Fatima não só é a “pequena irmã” de sua casa (a mais nova, e a que goza de maior proteção materna), como também de seus amigos da escola, pertencendo a um círculo de amizade exclusivamente masculino – e disputa fisicamente com outros meninos de igual para igual. A protagonista tem preferência por roupas masculinas, e ouve do namorado que “não se esforça para parecer bem para ele” ao negar-se a usar roupas femininas. Muito embora mantenha uma relação familiar bastante afetuosa, em momentos de conflito, é a ausência de uma feminilidade socialmente esperada que será contra ela frontalmente atacada.

Tudo isso poderia configurar um problema de reprodução vazia de estereótipos não fosse a conjuntura histórico-política de Fatima. A protagonista é detentora de certo privilégio ao residir na França, onde o estado é laico e não há imposição legal para o uso de determinadas vestimentas. A personagem desaparece, como mulher que busca afirmar sua identidade, ao vestir-se de burca para rezar, e é aqui que ela padroniza-se ao que lhe é esperado e soa ainda mais urgente que ela assuma uma persona destoante das mulheres do seu grupo, ainda que isso signifique a proximidade de um estereótipo do ponto de vista ocidental.

A diretora faz transparecer a dualidade interior da protagonista com sensibilidade comovente, através do trabalho contido de emoções pontuais e suficientemente potentes da atriz Nadia Melliti. Fatima carrega e tenta conciliar partes e lados diversos de si mesma, e é interessante como esse conflito que ela busca balancear vai pesar, principalmente, na religião, já que a garota não perde sua fé no Islã em razão de sua orientação sexual. Ela deseja ser acolhida, e seu diálogo com o imã da mesquita que ela e os familiares frequentam é definidor do propósito de luta da personagem, que não deseja abrir mão de si mesma ou submeter-se.

Quando o líder religioso refere a proibição das relações homossexuais, ela retruca que o texto religioso refere-se apenas aos homens, e não faz qualquer menção às mulheres. É bonita a autoconsciência que ela adquire, ao ponto de compreender, em que pese a religião, que sua existência não será anulada ou reprimida, ao mesmo tempo em que mostra-se respeitosa à cultura de seus ancestrais. Ela quer viver nesses dois mundos – e por que não?

La Petite Dernière traça uma linha identitária de conscientização crescente e cada vez mais madura de sua protagonista. Até que ela consiga se autoafirmar, ela nega seu nome, sua orientação sexual e sua origem em muitos momentos. Enquanto ela aprende a lidar com seus sentimentos e conflitos, sofre frequentes crises de asma, causadas por gatilhos emocionais que ela ainda não sabe direcionar. Trata-se, sim, de uma história de amadurecimento e busca por preservação de identidades LGBTQIA+ quase que universal. Mas não há como se negar a importância da pluralidade da representatividade lésbica em contextos, nacionalidades, religiões e culturas não-ocidentais, sendo tamanha a humanidade da diretora ao lidar, com clareza, a conexão indissociável das experiências sexuais de uma pessoa com aquilo que ela é e deseja ser para assegurar-se como ser dotado de dignidade plena.


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo e patrocínio. Agradecemos em especial a: Ana Carolina Ballan Sebe, Caio Pimenta, Eduardo Filho, Lucas Ferraroni, Maria Eliana Pilon, Renata Boldrini, Thiago Bocanera Monteiro, Tiago Maia e Wellington Almeida;

e

Advogada, crítica de cinema, editora e cofundadora do Coletivo Crítico. Membra do Júri da Latin American Critics Awards for European films.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *