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[78º Festival de Cannes] Nouvelle Vague

Este texto faz parte da cobertura do 78ª Festival de Cinema de Cannes, que ocorre entre 13 e 24 de maio.


Se há um único atributo com capacidade de unir a filmografia de Richard Linklater, de Jovens, Loucos e Rebeldes a Apollo 10 e ½, de Escola de Rock a Assassino por Acaso, eu arriscaria dizer que, quiçá, esse traço seria a leveza. O diretor transita leve pela melancolia, flui pelas questões mais elementares e humanas da vida ao ponto de nos arrancar risos e lágrimas, em sequência. Em retrospecto, tenho a impressão de que sempre assisto a seus filmes com um sorriso discreto, porém constante, no rosto –  lá estava ele, novamente, em Nouvelle Vague, o veredito de minha satisfação pessoal com o cinema do diretor.

Nouvelle Vague é um projeto um tanto arriscado. Ao optar por contar a história dos bastidores de Acossado, a obra síntese do movimento artístico francês que dá nome à obra e que se fez divisor de águas na história do cinema, desobediente às regras convencionais e criador de sua própria maneira de fazê-lo, Linklater assume para si responsabilidades e atrai julgamentos muito específicos. Afinal, ousa falar do que já está sedimentado, recria figuras míticas do cinema cujo valor e transcendência cinematográficos não se discutem. A nouvelle vague é a escola e o céu dos cinéfilos, e o diretor deseja espiritualizar através de sua obra, os deuses de uma multidão, por vezes, obcecada.

O maior acerto de Nouvelle Vague está, justamente, no atributo-elo de Linklater. A leveza, a singeleza, a suavidade atmosférica do diretor permite que ele não caia na seriedade de reproduzir fatos canonizados com fidelidade absoluta, enquanto proporciona a permanência do sorriso no rosto, e portanto, do afeto. Há, inclusive, até certo tom de deboche no estudo desse Godard de início de carreira, que retira dele, apropriadamente, o status de deus, ao humanizá-lo como um jovem cineasta que é questionado por todos ao seu redor, que talvez não soubesse, ali, muito bem o que estava realizando, mas que mantinha os ares de superioridade e certeza de tudo (uma característica, digamos, um tanto masculina, e aqui relembramos a vertente que nomeia Agnès Varda como a “mãe” rejeitada do movimento francês). 

O Godard de Linklater furta da Cahiers du Cinema para ir ao Festival de Cannes de 1959, que abriu com Os Incompreendidos, do seu então colega François Truffaut, vencedor do prêmio de melhor direção (a Palma de Ouro naquele ano foi para Orfeu Negro, coprodução brasileira). É irritante. Não filma mais que dois takes. Não filma por mais que duas horas. Se tiver fome, vai suspender as gravações. Fornece o roteiro aos atores apenas no dia da filmagem. Não quer interferências, rejeita a maquiagem, rejeita a arrumação do cabelo e do cenário. Trata-se de um Godard ainda crítico de cinema, se afirmando como cineasta, rebelde, que rechaça a continuidade: a realidade não é contínua. Um diretor que compreende que seu filme tem pressa, estabelecendo os jump cuts como regra. Com essas premissas, ele muda a forma de se fazer cinema. Mas aqui, é apenas um homem pretensioso, com dificuldades de fazer as coisas como deseja. Uma identidade em formação, colocada em dúvida.

Nouvelle Vague está muito longe de ser um dos melhores filmes do diretor (seu Blue Moon, exibido no 75º Festival de Berlim, é muito mais apaixonado). A obra debocha, mas o faz de forma absolutamente afetuosa. Não se leva muito a sério, o que é, de certo modo, uma forma de homenagem das mais acertadas, pois se distancia de qualquer obrigação de fazer reviver os mitos. Linklater nos faz recordar que a genialidade continua sendo humana e por vezes, um tanto desastrada, moralmente duvidosa e polêmica – é a humanidade, e não o endeusamento, que torna o filme um afago gentil aos amantes do cinema.

Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo e patrocínio. Agradecemos em especial a: Ana Carolina Ballan Sebe, Caio Pimenta, Eduardo Filho, Lucas Ferraroni, Maria Eliana Pilon, Renata Boldrini, Thiago Bocanera Monteiro, Tiago Maia e Wellington Almeida;

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Advogada, crítica de cinema, editora e cofundadora do Coletivo Crítico. Membra do Júri da Latin American Critics Awards for European films.

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