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[78º Festival de Cannes] O Esquema Fenício

Este texto faz parte da cobertura do 78ª Festival de Cinema de Cannes, que ocorre entre 13 e 24 de maio.


Se há algo de fascinante na linguagem do cinema, e que Wes Anderson parece compreender em plenitude ao criar o seu próprio método de fazê-lo, é a extração de sentimentos e sensações a partir da mais rigorosa, racional e antinatural construção imagética. O cinema que emula a realidade e que se esforça para que espectador abstraia da arte para experimentar e se envolver com a história a ser contada, segue, certamente, um caminho mais intuitivo e elementar na atração emotiva, ante a disponibilidade de uma gama de recursos de engajamento para tal, se o cineasta assim o que quiser.

Não há que se comparar um estilo cinematográfico com outro, um autor com outro, quando trata-se de sistemas tão diferentes de se fazer filme, mas é inegável que, um diretor como Anderson, ao se fechar nas possibilidades de sua própria autoria, assume o enorme desafio de encontrar um rico equilíbrio entre o formal e o emocional, o ponto certo e até orgásmico da linha tênue que vai cativar seu público. Não é incomum que nós, apreciadores e apaixonados por cinema, encontremos êxtase na sétima arte apenas pelo modo específico escolhido para expressá-la.

É uma pena que O Esquema Fenício, sua mais recente obra que fez parte da Seleção Oficial do 78º Festival de Cannes, não encontre, em seus esquemas mirabolantes e obsessivas simetrias, esse ponto altamente prazeroso. Se em Asteroid City, o ápice do deslumbramento se dá, inegavelmente, quando delicada e deliciosamente um determinado personagem chega do espaço para roubar para si um pedaço de asteroide – ali, paira uma sensibilidade absoluta sobre a mais científica das temáticas que o diretor já abordou – aqui, não há apogeu algum, apenas constância.

Zsa-zsa Korda (Benicio Del Toro, renovando a parceria com o diretor) é um magnata cujo poderio econômico o torna um ser humano de proporções de auto idolatria e endeusamento. Ele gaba-se por sobreviver aos inúmeros atentados contra sua vida, até que um deles provoca a queda do avião que o transporta e o conduz frente a frente com Deus (Bill Murray) para o julgamento de seus atos humanos.

Quando é presenteado com uma nova chance de vida, ele se vê determinado a se reaproximar de sua única sua única filha mulher dentre os dez de sua prole, a aprendiz de freira irmã Liesl (Mia Threapleton) nomeando-a como herdeira singular, bem como colocar em prática uma ação um negócio familiar filantrópico (o esquema fenício, com propósitos mais economicamente atrativos), necessitando, para tanto, do apoio de seus parceiros financeiros – The story of a family and a family business (a história de uma família de uma um negócio de família, em tradução livre).

Geograficamente, o chamado império fenício se desenvolveu na região costeira do mar Mediterrâneo, no território onde hoje se situam partes do Líbano, da Síria e de Israel. É nesse espaço que a empreitada dessa família desconectada vai se estabelecer. O Esquema Fenício é capitulado em episódios determinados pelos nomes dos investidores a serem “vencidos”, a estratégia toda colocada dentro de caixas de papelão como um tabuleiro de missões, e que vai sendo riscada com adendos e observações conforme se encerram – geralmente, para registrar a diminuição da participação esperada. A fé e a bondade da filha se mesclam à ganância do pai para, gradativamente, formarem uma espécie de simbiose que vai equilibrar o melhor de cada um nessa trajetória de amadurecimento mútuo, onde passa a valer mais a conquista afetiva um do outro do que o propósito do esquema em si.

O Esquema Fenício talvez seja o mais violento dos filmes de Wes Anderson, a principiar pela própria queda de avião que o introduz. Explosões, bombas, granadas, feridas e sangue serão representadas ao modo do diretor, da forma mais sistemática e milimetricamente posicionada possível. Os pedaços de avião estilhaçado parecem tirados de uma maquete posicionada numa igualmente sintética floresta. Nesse cenário, uma pequena quantidade de sangue no rosto já é suficiente para desorganizar a aparência usualmente limpa dos personagens, que chegam, inclusive, a empreender embates físicos.

Wes Anderson mantém o filme em um ritmo constante em que pese a enxurrada de acontecimentos e obstáculos de percurso, e muito embora cause simpatia e carregue certa meiguice a forma como a dupla Zsa-zsa e Liesl vá se conhecendo e adquirindo maneirismos mútuos de personalidade. Em O Esquema Fenício há uma carência de ternura em que pese toda construção artificial do diretor seja destinada a dar forma a uma relação humana, mais especificamente, a reconexão entre pai e filha. Ainda assim, em que pese a carência sensitiva, é inegável que o cinema de Wes Anderson é deleitoso por sua própria existência.

Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo e patrocínio. Agradecemos em especial a: Ana Carolina Ballan Sebe, Caio Pimenta, Eduardo Filho, Lucas Ferraroni, Maria Eliana Pilon, Renata Boldrini, Thiago Bocanera Monteiro, Tiago Maia e Wellington Almeida;

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Advogada, crítica de cinema, editora e cofundadora do Coletivo Crítico. Membra do Júri da Latin American Critics Awards for European films.

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