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[78º Festival de Cannes] Renoir

Este texto faz parte da cobertura do 78ª Festival de Cinema de Cannes, que ocorre entre 13 e 24 de maio.


Numa Tóquio do fim dos anos 80, enquanto toma aulas de inglês, Fuki (Yui Suzuki), uma garota curiosa de 11 anos, é questionada por sua professora para que fale de algum momento memorável que viveu nas férias escolares. A menina pensa um pouco, e rapidamente responde, com naturalidade e até empolgação: “eu fui a um funeral!”. Em perspectivas, tempos e lugares muito diferentes, mas caminhando lado a lado com Sound of Falling, de Mascha Schilinski que também integra a competição oficial do 78º Festival de Cannes, Renoir, filme japonês de Chie Hayakawa, volta seu olhar à infância e as marcas e refúgios que formam rastros em razão do contato precoce com a morte, através da criança que se vê cada vez mais solitária e isolada perante a doença grave do pai, Keiji (Lily Franky) e o estresse e certa negligência de sua mãe, Utako (Hikari Ishida), que precisa prestar cuidados ao marido, à filha, ao lar e ainda, trabalhar em tempo integral para sustentar a todos. 

Diante do abandono parental, que, aqui, é causado e justificado pelas circunstâncias trágicas da vida familiar, Fuki, cuja criatividade e talento para a escrita e invenção de histórias são, inclusive, destaques escolares indiferentes ao olhar materno sobrecarregado, recolhe-se gradativamente em seu próprio mundo, ao ponto de não sabermos, como espectadores, se o que nos é representado em tela é fruto da imaginação fértil infantil, que precisa, como fuga da realidade, encontrar acolhimento e acalento interior, já o que o exterior lhe é cruel demais. 

Em que pese o contexto desolador e a tendência ao azulado triste e gélido de sua fotografia, a inocência e doçura de Fuki não permitem que Renoir se torne um melodrama explorador da tristeza e da melancolia de seus personagens. A diretora, com sensibilidade, edifica, em sua obra, um lugar tão seguro quanto as fantasias da protagonista, e a sensação que permanece, muito embora as emoções incômodas e um tanto desesperadoras inseridas pontualmente, é a de paz. O contato com a morte e as responsabilidades que são atribuídas à Fuki tão prematuramente lhe são dolorosas, mas trazem, de algum modo, aceitação sobre o ciclo da vida. 

Como uma boa criança, a protagonista reúne obsessões e constrange com sua honestidade. Seu olhar é quase voyeur perante o mundo e a vida adulta. Ela se fascina com truques de mágica, imita animais e observa os adultos como se sedenta por lhes estudar, num misto de curiosidade e ânsia por aprender. Ao mesmo tempo em que mantém essa ingenuidade, é madura o suficiente para saber que é momento de chamar a ambulância para o pai e arrumar sua mala de hospital.

A própria morte se transforma em obsessão. A menina se imagina estrangulada em suas histórias, escreve sobre desejar ser órfã. No que parece ser seu maior devaneio (mas Chie Hayakawa não intenciona esclarecê-lo para nós), Fuki parece viver um pesadelo constante de abandono que a leva ao fundo do poço. Diante da dureza que a vida lhe reservou, não é de se estranhar que ela questione, numa breve narração que dá início ao longa, os motivos pelos quais as pessoas choram quando outras morrem. Seria porque sentem pelo ente falecido ou por elas mesmas? De Fuki, não vemos cair lágrima. 

Renoir nos coloca diante de situações em que nos vemos incapazes de indicar, moralmente, qual seria o melhor caminho ou o mais correto a se fazer, e essa isenção de julgamentos, muito embora sintamos pela protagonista, é, quiçá, seu maior atributo. Na figura controversa da mãe, que manifestamente relega os cuidados da filha ao mundo e pratica contra ela certo grau de abandono afetivo, e que, além disso, não faz questão alguma de esconder do marido, esperançoso ainda que em estágio final do câncer, que está aguardando e ansiando por sua morte (ele encontra a roupa de seu próprio funeral separada e bem passada), encontramos, ainda assim, justificativas que tornam complexo seu sentenciamento – o desespero a maior delas. 

Imprimindo beleza e ternura à melancolia, Chie Hayakawa não tem medo de posicionar a morte como alívio. O olhar de Keiji se encerrando para que uma cortina se abra é um paradoxo notavelmente doloroso, mas igualmente realista, quando inserido num contexto familiar em que grita o desprivilégio de classe social, em mora-se de modo claustrofóbico, em que a sociedade exige que o trabalho seja a primeira preocupação do ser humano em detrimento de todas as outras – e aqui, Fuki, cuja inocência é abertamente remissiva à obra desprezada de Renoir, Irene, é a maior vítima desse sistema.

Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo e patrocínio. Agradecemos em especial a: Ana Carolina Ballan Sebe, Caio Pimenta, Eduardo Filho, Lucas Ferraroni, Maria Eliana Pilon, Renata Boldrini, Thiago Bocanera Monteiro, Tiago Maia e Wellington Almeida;

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Advogada, crítica de cinema, editora e cofundadora do Coletivo Crítico. Membra do Júri da Latin American Critics Awards for European films.

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