
[78º Festival de Cannes] Romería
Este texto faz parte da cobertura do 78ª Festival de Cinema de Cannes, que ocorre entre 13 e 24 de maio.
É fato que os aspectos identitários que formam uma pessoa como ela é constituem a somatória de fatores relacionados ao seu passado e ancestralidade, àqueles que vieram antes, àquilo que ela se tornará a partir disso. É formado, ainda, pelo presente modulado pelo exterior, pelos acontecimentos ao redor, um inconstante fio que vai passar por mudanças durante toda nossa vida. Há aqueles que conferem à conexão familiar pelo sangue caráter de imprescindibilidade para composição de identidades. Há, ainda, as burocracias de sociedade que nos tornam existentes, como, por exemplo, a certidão de nascimento. O que somos sem um pedaço de papel que atesta que subsistimos como pessoas? O que nos tornamos quando esse documento de suma relevância é incompleto, ou seja, quando não há ancestralidade burocraticamente definida? Somos fragmentos das pessoas que passam por nossa vida, mas a ausência de uma história de origem nos torna desintegrados socialmente. A identidade humana vai encontrar em aspectos outros pilares para sua constituição, mas um passado nebuloso vai, em maior ou menor grau, conversar conosco e demandar de nós em algum momento da vida.
No semi-autobiográfico Romería, novo longa de Carla Simón depois de Alcarrás e inserido na competição do 78ª Festival de Cannes, Marina (Llúcia Garcia) é uma jovem fragmentada que busca, em um afetuoso coming of age, juntar seus cacos identitários e originários para completar seu registro civil. Órfã desde muito cedo, em razão da morte precoce de ambos causada pelo vício em heroína e pela AIDS, ela cresceu com a família materna, e nunca obteve o reconhecimento da família paterna a respeito de sua existência. Sua memória a respeito dos pais é formada por aquilo que escuta as pessoas dizerem sobre eles. Quando ela obtém uma bolsa de estudos para estudar cinema, ela parte para a cidade ensolarada e marítima de Vigo, na Espanha, para contatar a família do pai e suprir a lacuna existencial através do reconhecimento de sua paternidade.
Marina, no ambiente familiar paterno, é como nós, espectadores: uma observadora, em constante compreensão do que acontece no seu entorno, incerta sobre o que virá depois. Llúcia Garcia nos fornece uma personagem silenciosa, cujo vacilo do olhar imparável vai dizer se o terreno por onde pisa é seguro ou não. Parte em sua jornada às cegas, sem saber se será acolhida ou rechaçada por aquelas pessoas que desconhece, com quem não nutre qualquer laço de afinidade além do sanguíneo. O mar que ela precisa atravessar vai muito além do sentido geográfico. A protagonista enfrenta um mar de pessoas, tias, tios, primos e primas, e finalmente, a avó e o avô, desafiando as ondas que a julgam como reflexo dos pais, acerca de quem, notoriamente, evita-se falar.
Simón confere, através dos raios solares deslumbrantes e confortáveis que tocam a costa espanhola da Galícia, um aspecto onírico que vai bem representar aquilo que Marina está construindo como identidade e como lembrança de um passado que não é, necessariamente, o seu, mas que a conecta com os pais de modo muito carinhoso e sensível. Ela obtém, sobre os pais, informações contraditórias vindas dos núcleos materno e paterno, mas ainda assim, junta esses pequenos pedaços para fornecer a si mesma e a eles uma história, que, muito embora melancólica e trágica, pode ser bela e repleta de doçura – em que pese a dependência química e a doença, havia amor entre eles, e é nesse espaço afetuoso que ela foi concebida. Essa é a origem que ela se apropria.
Não trata-se, de forma alguma, e é importante que se diga, de uma formação ilusória do passado. Marina é consciente e compreensiva a respeito das misérias da tragédia que a precede. Sabe, inclusive, que sua concepção foi indesejada pelo pai, que não a viu nascer, o que reflete, inclusive, no afastamento da família paterna. A família do pai, aqui, mostra-se apenas um caminho para sua autocompreensão situacional no mundo, ainda que passe, inevitavelmente, a existir afeto e algum elo com alguns membros da família. Trata-se, sim, de uma apropriação consciente e racional do passado, e a aceitação a seu respeito é que vai permitir o acalento e a paz.
Se o olhar hesitante e tímido, porém atento e detalhista de Marina é, de algum modo, o nosso olhar, como estudante de cinema, a câmera que a personagem carrega para registrar, afoita, os fragmentos que ela depois vai unir, intermedia nossa percepção. A visão que temos é a da Marina cineasta em formação, e é, portanto, a de Carla Simón, que vê-se e aceita-se a si mesma com carinho e encontra-se como pessoa que existe.


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo e patrocínio. Agradecemos em especial a: Ana Carolina Ballan Sebe, Caio Pimenta, Eduardo Filho, Lucas Ferraroni, Maria Eliana Pilon, Renata Boldrini, Thiago Bocanera Monteiro, Tiago Maia e Wellington Almeida;
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