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Zona de Interesse e os reality shows

“A gente fica aqui dentro preso que nem bicho”. Essa frase foi proferida pelo músico paulista Supla em 2001, no reality show Casa dos Artistas, do SBT. O programa era uma cópia fiel do Big Brother, da franquia holandesa Endemol, o qual foi levado ao ar pela Rede Globo logo depois. Foi assim: a emissora de Sílvio Santos improvisou um outro programa alheio à Endemol para se antecipar e se beneficiar do ar de novidade de que os realities usufruíam no alvorecer do século 21. O que a frase de Supla tem a ver com o filme Zona de Interesse, de Jonathan Glazer? Tudo a ver, com o perdão do clichê.

Qualquer obra artística pode incorporar qualquer outra forma de conhecimento. Nesse sentido, é muito bom poder assistir e resenhar filmes que mesclam linguagens provindas de outras mídias. Em Zona de Interesse (The Zone of Interest, 2023), reconheço uma inspiração nos reality shows que existem agora sobre todos os assuntos e modos contemporâneos de vida.

Faço isso me juntando a todos os outros articulistas de cultura, e também aos que premiaram Zona de interesse com o Oscar de filme internacional em 2024. Absolutamente todos reconhecem no trabalho de Jonathan Glazer a genialidade no uso da dimensão sonora como elemento indicador de um mundo que acontece (em princípio) paralelo ao mundo da família chefiada por Rudolf (Christian Friedel) e Hedwig Höss (Sandra Hüller).

Junto à dimensão sonora, agrego também a dimensão olfativa, impossível (por ora) de executar no Cinema, mas muito bem marcada na onipresença das flores no quintal dos Höss, e também na iniciativa de Hedwig Höss em fazer com que a filha bebê sentisse seu perfume para não perceber o odor de carne queimada que vinha do campo de extermínio ali ao lado.

Essas dimensões, a meu ver, são responsáveis pela resposta à pergunta que muitos expectadores fizeram: “o que de fato está acontecendo no filme? Que história está sendo contada ali?” Muitos chegaram a se queixar dizendo que em Zona de Interesse não acontece nada, não há uma trama, um antes-durante-depois no sentido tradicional dos termos.

Este texto se dedica a dialogar com essas perguntas e queixas dos espectadores. Mas, para isso, eles precisarão ampliar seu entendimento do que é de fato uma história, para incorporar ao Cinema a prerrogativa de contar uma história como se um filme fosse um reality show. E essa incorporação torna Zona de Interesse mais genial ainda.

Também faço isso pela convicção de que, quando se cria uma nova forma de dizer as coisas, criam-se também possibilidades de dizer novas coisas. Essa possibilidade, no que diz respeito a um dos mais importantes temas da história da Humanidade, que é o genocídio nazista, revigora, com novas questões e facetas, o muito que ainda precisa ser dito e rememorado. Isso já tem acontecido: o documentário Relato Final (Final Account, 2020), de Luke Holland, que resenhei no site de cultura Longa História, descreve a circulação das ideias nazistas no cotidiano dos alemães. Zona de Interesse igualmente enquadra as relações cotidianas, mas com uma importante finalidade: penetrar na mente profundamente perversa e degenerada de Rudolf Höss.

Pensando um pouco em reality shows

Não acompanhei muitos reality shows, mas ter assistido a alguns me fez identificar neles alguns esquemas narrativos. Um deles diz respeito a um determinado tempo em que as pessoas são observadas, e geralmente alguma intervenção profissional se faz a partir do recorte apresentado aos espectadores. Um desses programas é Supernanny, reality originalmente inglês que estreou em 2004, e levado entre 2006 e 2014 pelo mesmo SBT da Casa dos Artistas.

No programa brasileiro, a pedagoga argentina Cris Poli visita casas de famílias disfuncionais e ensina técnicas capazes de melhorar o relacionamento entre seus membros. Em alguns dos episódios a que assisti, o programa começava com as pessoas meio que acordadas tacitamente a agirem como se fossem uma família de propaganda de margarina: perfeita, com todos felizes, se comportando civilizadamente e se tratando de maneira respeitosa. Porém, ao cabo de uns poucos minutos, as máscaras caem, as disfuncionalidades se revelam, e os conflitos aparecem.

Essas situações são bons argumentos para os críticos dos reality shows que afirmam que todo mundo ali está interpretando personagens. Ora, a questão de interpretar personagens diz respeito a saber como de fato são esses personagens a serem interpretados. Se as famílias do Supernanny não fazem ideia do que é conviver de um modo não tóxico, como poderão sustentar um programa inteiro fazendo de conta que são uma família feliz? E, se a fossem, por que precisariam de uma supernanny?

A disfuncionalidade absoluta da família Höss

Jonathan Glazer escolhe uma forma de filmar Zona de Interesse que também nos permite acompanhar a família Höss em seu dia-a-dia por algum tempo, mas os detalhes nos levam a reconhecer seus membros como os bichos confinados mencionados por Supla. Eu particularmente me vinguei um pouco deles ao vê-los dentro da própria casa, mas apertados, em plano médio. Estão frequentemente dispostos em cômodos enquadrados na diagonal, sendo que o meio da tela é ocupado pelo canto das paredes. Nesse exíguo espaço, os personagens estão presos, afunilados sob nossos olhos, como bichos acuados. Não teriam a menor chance de fugir caso algo acontecesse por ali.

E não apenas isso. Volta e meia, Hedwig percorre o jardim em travellings que acompanham o muro que separa o lar Höss do campo de extermínio de Auschwitz. Um muro que ela procura esconder com flores perfumadas, mas o campo se anuncia o tempo todo, nas chaminés fumacentas, nos gritos de terror, nos tiros disparados ao longe. Hedwig é a rainha de Auschwitz, mas também está naquela casa meio que como um bicho.

Como a mulher que cumpre à risca a tarefa de toda boa ariana de parir filhos para o Reich, Hedwig não tem outra alternativa além de usufruir lateralmente do sucesso do marido. Sua origem humilde, denunciada pela mãe ex-faxineira de mulheres judias ricas, não lhe permite descolar-se das conquistas de Rudolf. E nem ela parece querer isso, mas a satisfação não lhe tira o caráter de animal confinado, impossível de ser observado e julgado por seus contemporâneos, mas exposto à dissecação no futuro.

Essa dissecação, proporcionada por Glazer, é que revela a absoluta disfuncionalidade dos Höss. Na estrutura do Reich, trata-se da família perfeita para a Zona de Interesse, nome dado ao que posso chamar de Alemanha expandida, que são as regiões invadidas e anexadas por Hitler – no caso do filme, a Polônia -, e incluídas no projeto de povoação pelo povo ariano. O mesmo projeto que procede ao esvaziamento dos indesejáveis que lá moravam e seu posterior extermínio em campos de concentração como Auschwitz, Dachau, Bergen-Belsen, Treblinka etc.

Mas, para o mundo que veio depois, a família Höss se tornou exemplo de tudo o que há de mais desumano e cruel que uma pessoa pode fazer a outra. Tornou-se uma família que jamais poderia ter existido. E quem a estuda o faz para que gente como eles nunca mais existam, ou, se existirem, jamais recebam o poder que receberam.

Uma narrativa em que o eixo não é o tempo, mas sim o espaço

De fato, nada acontece a Hedwig e Rudolf durante o tempo do filme. Como num documentário, gênero bastante próximo dos reality shows, Glazer filma a sucessão dos dias da família, com uma quebra da rotina com a transferência de Rudolf, que ao fim da projeção retornaria a Auschwitz mais poderoso do que já era. E só. Assim, a progressão do filme, se há, não acontece ao longo do tempo em que seus personagens são enquadrados.

Penso que há uma outra progressão, mas sim de espaço, e nesse sentido Glazer nos faz acompanhar a paulatina e literalmente visceral incorporação de Auschwitz àquela família, malgrado todos os seus esforços de permanecerem distantes do campo, e se convencerem de que estão sendo bem-sucedidos nessa empreitada.

Isso não acontece apenas com o barulho, que brilhantemente Glazer mantém em volume baixo, e os cheiros. Auschwitz penetra naquela família pela riqueza judia de que seus membros se apropriam, pelo chorume invadindo seu rio, pelas cinzas humanas usadas como adubo em seu jardim. Penetra nas próprias histórias contadas por Rudolf a seus filhos, e chamo a atenção do espectador sobre como é significativo que ele conte a seus filhos uma história para crianças, enquanto autoriza a presença de crianças judias no campo, sofrendo no corpo a mesma história (“Ela roubou uma maçã!”, ouvimos, em algum momento).

Tudo isso constatado com um horror que atinge apenas a nós, já que a família Höss não parece se dar conta do quanto já está contaminada com esse horror, mesmo comemorando aniversários enquanto tem gente morrendo do outro lado do muro.

Mas, em algum momento, as máscaras caem

A finalidade dos reality shows é revelar as pessoas reais por trás das personas. Talvez seja isso o que mais produz expectativa em quem está assistindo: quando é que as máscaras vão cair. Assim como eles, ansiei pelos instantes em que Rudolf e Hedwig revelariam sua alma sem os vernizes da etiqueta nazista (sim, o filme mostra que isso existe). Isso acontece em momentos breves, na irritação de Hedwig ao sentir seu estilo de vida em perigo, e na forma como desconta as frustrações nas empregadas: “Vou mandar meu marido jogar suas cinzas em Babice”, é a ameaça que faz a uma delas.

E acontece também com Rudolf, em uma das cenas mais geniais do filme, a da festa que se segue à sua promoção ao posto de grande articulador do holocausto. A festa não é em sua homenagem, mas ele está lá, carregando Auschwitz dentro de si. Evidentemente, o amálgama entre Auschwitz e Rudolf Höss não se faz sem que todos os convidados da festa, todos nazistas, também não carreguem consigo o campo de extermínio, já que a culpa ali é coletiva. Assim, o que ouvimos durante a festa não é o que os músicos estão tocando, mas sim os sons de horror das pessoas que gritam inutilmente por suas vidas, e os barulhos do aparato criado pelos nazistas para que a operação de exterminá-las ocorra da forma mais eficiente possível. Eficiência que Rudolf Höss não hesitaria em aplicar a qualquer um.

Então observe o leitor como o percurso narrativo que Glazer escolhe em seu filme, a trama que tem por clímax a festa final, não se manifesta nos acontecimentos, mas sim na penetração dos mundos, na quebra simbólica do muro, algo que a família Höss tanto se esforça para evitar. Essa penetração, como num reality show, remove as camadas de polidez que os Höss muito mal tentam colocar sobre si mesmos, numa tentativa inútil de ser aquilo que jamais seriam na vida.

Mas, como carregar Auschwitz dentro de si é demais para qualquer um, demais até para Rudolf Höss, ele vomita. Nesse refluxo, encontram-se juntos os grandes ensinamentos de Hannah Arendt e Theodor Adorno: não, genocidas não são monstros nem aberrações. São pessoas como nós, com cérebros e vísceras. Como os diretores de reality shows, Arendt e Adorno escancaram o que gostamos de ver nos outros, mas não em nós mesmos: qualquer um de nós pode se tornar um genocida.

Ao expor sem filtros a ganância sem limites dos Höss, Jonathan Glazer nos permite vê-los como exemplos de um só fato: aproximamo-nos de Auschwitz sempre que, dominados pelo desejo de poder, nos perdemos do fio ético e moral que nos permitiu crescer como civilização.

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Professora Titular da UFRJ, intelectual e pesquisadora em ciência e filosofia cognitiva, articulista de cinema, feminista.

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