As Virgens Suicidas
Texto escrito em dezembro de 2019 para o dossiê sobre filmes de 1999 da Revista Moviement.
O cinema de Sofia Coppola é marcado por mulheres isoladas. Com uma poética muito própria, se tomarmos sua filmografia, o senso de não-pertencimento é uma constante, acompanhado pelo controle sobre os corpos e suas performatividades. Suas personagens sentem falta de um lugar para chamar de seu e essa falta é expressa no estranhamento dos demais. Ausenta-se o sentido; abunda a tristeza e a busca por si. Existe uma melancolia quase palpável em torno de muitas de suas heroínas. Esses elementos são passíveis de identificação, em maior ou menor grau, desde quando a cineasta lançou o filme As Virgens Suicidas, seu primeiro longa metragem, em 1999.
Os subúrbios das cidades estadunidenses constantemente são objeto do olhar do cinema: um microcosmo aparentemente uniforme, onde os ideias e modos de viver devem ser alinhados. Na sequência de abertura do filme, vemos pessoas cortando a grama, passeando com o cachorro, jogando basquete em frente à garagem: cenas de um cotidiano suburbano presente na sucessão de casas iguais, com gramados iguais à sua frente, que devem guardar vidas iguais. A narração em off com voz masculina nos informa que tudo aconteceu 25 anos antes, estabelecendo que há um tempo presente de onde parte a reminiscência; que a história se passa em meados da década de 1970 e que, por fim, embora o protagonismo do filme seja marcadamente feminino, o ponto de vista sobre os acontecimentos é de um homem.
Baseado no livro de mesmo nome de Jeffrey Eugenides, as protagonistas do filme são as irmãs Lisbon: Cecilia (Hanna R. Hall), de 13 anos; Lux (Kirsten Dunst), de 14; Bonnie (Chelse Swain), de 15; Mary (A.J. Cook), de 16 e Therese (Leslie Rayman), de 17, que moram com seus pais, um casal composto por um professor de matemática chamado Ronald (James Woods) e uma dona de casa, identificada apenas como Sra. Lisbon (Kathleen Turner). Criadas em um ambiente de grande religiosidade, as meninas não interagem com outras pessoas de sua idade, a não ser entre elas mesmas. Logo após a abertura, Cecilia corta os pulsos, com o corpo na banheira e sua cabeça rodeada de água. No chão, um santinho com uma imagem de Maria, a mãe e a virgem, tem sobre ele algumas gotas de sangue. Cecilia não morreu e, levada a um psicólogo para conversar sobre o fato, é questionada por ele sobre sua pouca idade para sentir como a vida realmente pode ficar ruim. No consultório, o tique taque do relógio de parede é incessante, exteriorizando a urgência do tempo e de sua passagem. Ela responde “obviamente, doutor, você nunca foi uma menina de 13 anos”. Essa fala é importante por dois motivos: ela marca a noção de gênero e a noção de idade. Não apenas os adultos desdenham o sofrimento dos adolescentes, como se fossem quem sequer começaram a vida; como pessoas do gênero masculino, a exemplo do psicólogo ou do narrador, não fazem ideia do que passam aquelas do gênero feminino. E, novamente, psicólogo e narrador, como dois homens adultos que são, tentam decifrar as ações de Cecilia (o primeiro) e de todas as irmãs (o segundo). Gênero e idade são chaves para a construção da narrativa.
O ato de Cecilia marca um dos dois pontos de virada nas ações dos pais em relação às filhas. Com uma rotina controlada e pouco acesso à sociabilização, eles são incentivados a deixar as filhas conviverem com rapazes de sua idade e convidam alguns deles para sua casa. Em uma sequência bastante significava, um deles pede para ir ao banheiro e é instruído a utilizar o das meninas. Não é que exista algo que possa ser chamado de “mundo feminino”, uma vez que, obviamente, mulheres são múltiplas e diversas. Mas a falta de referência deles em relação às meninas de sua idade ajuda a construir algo que adquire essa função. A câmera, a princípio, para na porta, antes de acompanhá-lo, como se hesitasse em explorar com ele esse local desconhecido, sagrado e exótico. Em seguida, a câmera, agora subjetiva, escaneia os detalhes do quarto, focando em uma imagem iluminada de Maria segurando uma flor. O rapaz entra no banheiro como se adentrasse em um templo. O lugar é como um altar em que ele se aproxima das garotas por meio de seus cheiros e suas maquiagens. A reverência com que toca nos objetos cotidianos delas se relaciona com a forma como ele e seus amigos conversam sobre elas, tratando-as como seres distantes e idealizados, que tentam decifrar.
Mas na história, não são só os garotos que observam. No subúrbio todos são vigiados e comentados. A jornalista, que se materializa de maneira desagradável, é exemplar nesse sentido, mas os grupos de pessoas da vizinhança conversando sob a câmera distante, espiando e julgando as ações das filhas, mas também dos pais, são emblemáticos ao expressar a banalidade das percepções pautadas em um senso comum vazio.
De volta a festa, as meninas interagem pela primeira vez com garotos de sua idade. Cecilia escondeu as gazes que recobrem seus pulsos com pulseiras coloridas, quase infantis, que conotam sua juventude de caçula. Quando percebe que Joe, o menino com deficiência intelectual com o qual estava conversando, é humilhado pelos demais, ela se retira da festa. A crueldade não é exclusiva dos adultos e a menina, que enchia seus cadernos com poesias doloridas, se joga do quarto no andar de cima em direção a cerca da casa. Com o corpo segurado pelo pai, cria-se uma imagem, novamente de referência religiosa, de uma Pietá, em que os lugares do masculino e do feminino se invertem, deslocando os gêneros tradicionais do calvário e do luto, respectivamente, no imagético cristão.
A segunda ação que marca um ponto de virada dos pais foi feita por Lux. As quatro meninas foram convidadas para um baile na escola, devidamente acompanhadas por rapazes de sua idade. Foram todos juntos em um só carro, mas voltaram sem Lux e seu acompanhante, Trip Fontaine (Josh Hartnett). A música da banda Heart diz “he’s a magic man” (“ele é um homem mágico”) e o narrador diz que ele era sucesso entre filhas e mães. Curioso, porque trata-se, na verdade, de um garoto, não de um homem, embora o narrador, portanto, o visse como muito mais na época, possivelmente por ele ser um pouco mais velho e experiente. O lugar ambíguo dos garotos em relação à sexualidade, desejosos, mas jovens, é explicitado em um momento em que, em roda, conversam sobre sexo, até que a mãe deles aparece chamando-o para casa, para sua aula de violino. Ainda são meninos que, apesar de toda a curiosidade, estão em uma rotina escolar e sob tutela materna. O desejo de outrora de poder viver as experiências sobre as quais conversam pode afetar a fala no tempo presente do narrador, nunca confiável.
Trip e Lux se separaram dos demais e foram para o campo de futebol, onde passaram a noite. Quando acordou, ela estava sozinha. O filme todo é banhado por uma luz solar, clara e amarelada. Lux, deitada na grama, é iluminada com uma atípica luz azul do amanhecer. Lux quis ter controle sobre seu corpo e seus desejos e foi isso que marcou a virada de seus pais, novamente. O que se segue é a restrição ainda maior da liberdade de circulação: as irmãs são impedidas pelos pais de irem à escola e passam os dias em seu quarto. Discos de rock são queimados. A tela partida cria um fiapo de conexão entre as meninas e os meninos, que dividem músicas pelo telefone, lado a lado, mas fisicamente separados. A já mencionada tutela materna, nesse caso, é intensificada: o pai até demonstra empolgação com algumas das experiências que as filhas estavam começando a viver; é a mãe, afinal, quem controla esses corpos para que ajam em conformidade com as suas crenças.
Os corpos das meninas Lisbon, aliás, são os elementos centrais na construção imagética da narrativa. Envoltos em vestidos e camisolas sempre em tons de azul ou branco, eles remetem a um ideal muito específico de juventude, beleza e pureza vinculado à Virgem Maria de Cecilia. Jogados ao chão do quarto entrelaçados ou abraçados a uma árvore do lado de fora, eles apresentam suas portadoras sempre como seres místicos de beleza etérea, como Graças primaveris. O olhar do narrador e de seus amigos serve para intensificar essa sensação, por meio de um distanciamento sacro.
O senso de aniquilamento, por sua vez, está sempre próximo. Cecilia fala sobre os animais que entraram para a lista de espécies ameaçadas de extinção e as árvores da vizinhança estão doentes e fadadas ao corte. O narrador no tempo presente lembra que naquele ano houve uma contaminação com algas e fungos no lago e o cheiro era insuportável. Ele recorda de uma festa de debutantes em que os adultos usavam máscaras de gás para lidar com o odor daquele verão, mantendo uma falsa normalidade: apesar de tudo que vinha acontecendo, as convenções sociais e os ritos de passagem devem ser mantidos. Na mesma festa, eles zombavam das angústias juvenis, desconectados do próprio eu do passado. Nas memórias, o evento é filtrado de luz verde, como que pútrido, destoando da claridade que existia quando as Lisbon estavam presentes. De certa forma é como se o fim da vida das irmãs estivesse ligado ao Antropoceno e à tragédia ambiental, em uma escala maior, pelo menos na percepção do narrador, como se suas mortes fossem um sinal do fim dos tempos, que até hoje ele tenta entender.
Quando os meninos leem o diário de Cecilia, buscam ali justamente algo que lhes dê alguma luz, que lhes traga alguma compreensão. Encontram a banalidade da rotina, ao mesmo tempo que se dão conta da prisão que é ser uma garota naquele contexto. Eles não poderiam compreender. Cárcere privado. Controle sobre os corpos e sobre a manifestação da sexualidade. A beleza da imagem. A sensação de vazio e impossibilidade de esquecer. Uma lágrima no canto do olho de Lux na última vez que a viram, dando-lhes as costas. Nesse conjunto de elementos religiosos e mitológicos, sempre remetendo a uma a uma juventude idealizada, Sofia Coppola constrói As Virgens Suicidas com uma beleza e melancolia singulares, transmitindo a solidão de suas protagonistas pelo olhar distante e reverente de seu narrador.