Entrevistas

Conversa com Sofia Coppola e Cailee Spaeny sobre Priscilla

Eu ainda lembro quando assisti a As Virgens Suicidas (The Virgin Suicides, 1999) pela primeira vez. Eu tinha 15 anos, assim como Bonnie Lisbon, uma das personagens principais. Em certo momento da história, um médico fala para Cecília, a irmã de 13 anos, que ela não é velha o bastante para saber o quão ruim a vida fica e ela responde “obviamente, doutor, você nunca foi uma menina de 13 anos”. Nunca tinha visto o senso de solidão, isolamento e tristeza de ser uma menina adolescente traduzido em uma fala tão simples. E eu, naquela idade, me enxergando em todos aqueles sentimentos. Foi nesse momento que Sofia Coppola virou a primeira diretora que eu decorei o nome. Não foi a primeira de quem eu vi um filme, obviamente. Mas foi a primeira vez que eu percebi que aquela história, tão delicada e tão próxima, vinha do trabalho atrás das câmeras realizado por uma mulher.

Em seu novo lançamento, Priscilla (2023), a cineasta narra a história de Priscilla Presley, uma personagem icônica que foi casada com Elvis Presley, mas de quem pouco se fala nos bastidores da carreira dele. Notavelmente, em Elvis (2022), o musical de Baz Luhrmann lançado no ano passado, ela mal aparece para falar uma frase. Claro que as intenções de ambas as obras são diferentes e a própria diretora afirma que seu filme tem outra escala, focando justamente, na intimidade da vida privada, em oposição ao mundo externo do artista.

O filme é inspirado no autobiografia chamada Elvis and Me: The True Story of the Love Between Priscilla Presley and the King of Rock N’ Roll (Elvis e Eu: a verdadeira história de amor entre Priscilla Presley e o rei do Rock N’ Roll, em tradução livre), publicado originalmente em 1985, e coloca a personagem título como protagonista da história, geralmente contada pelo ponto de vista da metade mais famosa do casal. Como outras obras da filmografia de Coppola, trata-se de uma história de crescimento, que comunica o isolamento da protagonista, interpretada por Cailee Spaeny, encastelada desde a tenra idade entre fama e riqueza. O contexto deveria ser de sonho, mas a realidade do relacionamento com o cantor (vivido por Jacob Elordi) revela muitas outras camadas. No dia 30 de outubro tive o prazer de participar de uma coletiva de imprensa com a diretora, Coppola, e a atriz, Spaeny, em uma conversa sobre alguns dos aspectos centrais do filme e do trabalho de ambas nele.

Minha primeira pergunta, para Sofia, foi porque ela decidiu escolher a história de Priscilla Presley para contar, especialmente levando-se em conta sua filmografia repleta de outras protagonistas solitárias. Sofia explica que se interessa pela relação entre fantasia e realidade, “do que parece ser uma coisa, aparentando ser ideal, e então a realidade por trás disso. Talvez por crescer na indústria cinematográfica eu meio que vi o lado diferente disso. Então tenho uma visão mais realista de como as coisas podem ser. E para quem está de fora, parece um conto de fadas”, argumenta. Segundo ela, quando se conhece a história de Priscilla e se ouve “as lutas pelas quais ela passou, não é de forma alguma o que se espera, que ela tinha essa vida ideal. Havia altos e baixos, mas ela também enfrentou dificuldades. Acho que há essa ideia em nossa cultura de que a fama e a riqueza vão te fazer feliz, mas a realidade é que isso vem com um conjunto inteiro de bagagens. Portanto, estou sempre interessada na mistura de fantasia e realidade”. A diretora explica que o desejo de fazer o filme veio do contato com o livro, quando descobriu aspectos da vida de sua protagonista de que não fazia ideia:

“Estava lendo o livro de memórias de Priscilla Presley e nunca esperei que me envolvesse tanto. Fiquei realmente surpresa porque percebi o quanto sabia pouco sobre ela. Fiquei tocada pela sua história e conectei-me muito com a forma como ela descreveu tudo o que passou para se tornar uma mulher independente depois de circunstâncias tão incomuns. Não fazia ideia de que ela estava no ensino médio morando em Graceland, e senti que a história dela dizia muito sobre as mulheres da geração da minha mãe e sobre o que todas as garotas passam, mas de uma maneira realmente única. Então, senti, e também decidi me aprofundar naquele mundo do folclore americano de Graceland dos anos 60”.

Ela continua, dizendo que sempre se interessa por saber como as pessoas se tornam quem elas são e como encontram sua identidade e que esse filme tinha muito a ver com isso. A colaboração com a própria retratada foi muito importante para a composição da obra, de acordo com a diretora, porque ela lembra dessa época em detalhes e estava sempre disposta a compartilhar suas memórias com detalhes vívidos. Reflete que sua experiência colaborou com o trabalho: “para mim, pegando [o filme] nesta fase da minha vida, senti que tenho a experiência necessária para fazê-lo. Tive a sensação de que sabia como fazer [esse trabalho]. Você sempre vai descobrindo à medida que avança. Nunca é fácil”. Dessa forma, reflete que a história se relaciona com a fase atual da sua vida, sendo mãe de meninas adolescentes. Buscou ver a história com ambas as perspectivas, a de Priscilla, mas também a de seus pais, que a deixaram ir morar em Graceland tão cedo, e a tensão que isso causou. Para a diretora, assim, agora ela tem uma perspectiva diferente, e pôde somar à história em diversos níveis.

“Me conectei muito à geração da minha mãe, observando o que minha mãe passou e depois olhando para minhas filhas e estando no meio dessas gerações que mudaram muito e, de certa forma, ainda têm muito em comum”.

Em seguida, perguntei para ambas sobre a composição de uma personagem como essa, que no começo do filme tem 14 e ao final tem 28 anos, e sobre a abordagem para retratar esse arco de crescimento e as mudanças, especialmente internas, pelas quais ela passou ao longo desse período. A pergunta foi para saber os desafios e os diálogos entre ambas visando a criação da versão de Priscilla presente no filme. Cailee relata que cresceu em uma família que era fã de Elvis, e por isso ele esteve sempre presente em sua infância. Ela conhecia Priscilla pelas fotos ao seu lado, mas não tinha contato com sua história. Por isso achou empolgante contar o que chama de “o lado dela da história”. Ela explica que a forma como o roteiro foi escrito por Sofia era muito visual e por isso ela conseguiu sentir o ambiente em que estava. Ela acrescenta:

“Crescendo com os filmes de Sofia e a maneira como ela se conecta com histórias de jovens mulheres, o que acho tão raro em muitos filmes atualmente, senti que era uma verdadeira representação de jovens adolescentes, então fiquei empolgada em narrar a história, porque ela nunca havia sido contada antes. Mas [tinha que ser] com essa cineasta. Não consigo imaginar mais ninguém contando a história”

Nesse sentido, dado que a personagem passa por muitas idades diferentes, Cailee diz que um dos seus maiores desafios foi fazer com que essas idades parecessem verdadeiras e diferenciá-las. “Mas, sabe, filmamos em 30 dias e fora de ordem. Então, você estava realmente tentando encontrar coisas ao longo do caminho para se ancorar”. Sofia relata que as duas se encontraram primeiro para um café e ela mostrou a Cailee algumas fotos de Priscilla e explicou o que tinha em mente para o filme e assim começaram a discutir a personagem.

“Quando Cailee aparecia no set, eu sabia em que ponto da história estávamos pelo modo como ela aparentava ser, e de alguma forma ela acompanhava isso, porque quando cortamos [o filme] na ordem correta, eu fiquei impressionada como ela fez essa transformação gradual. Eu fiquei impressionada. Felizmente, conseguimos nos imergir em cena e encontrar nosso caminho através dela, e de alguma forma tudo se encaixou, e ela realmente se transformou de acordo com a idade em que estava”.

A diretora complementa que nunca trabalhou em uma história sobre uma pessoa que estivesse viva e que possa assistir ao filme. O desafio, então, foi garantir que ele fosse uma narrativa que Priscilla sentisse que representa sua experiência, ao mesmo tempo em que pega uma parte tão significativa da vida de alguém e a condensa para se encaixar naquela duração. “Como faço isso para dar a impressão de tudo o que ela passou? E eu queria que parecesse que essas memórias se juntavam e, no final, você tivesse uma ideia de como foi a experiência dela”.

A colaboração com Priscilla também lhe forneceu pequenos detalhes que mostram o lado humano e as vulnerabilidades do artista. Alguns desses causos não estavam no livro, como uma cena em que ela e Elvis foram ao cinema e ele repetia as falas de Humphrey Bogart de cor. “Achei realmente importante incluir isso porque diz muito sobre as frustrações dele como artista, e como ele queria ser um ator sério, e depois mais tarde, você vê de onde vêm algumas de suas frustrações. Coisas assim e a experiência dela sobre o isolamento que ela sentia e a pressão que tinha para ser esse ideal” foram inspirações, segundo a diretora. Para ela, a cena de abertura, com os pés de Priscilla pisando descalços em um carpete, indicam que vamos ver a sua perspectiva e essa é a forma para informar isso visualmente.

Cailee complementa que sentiu como uma grande responsabilidade saber que Priscilla Presley assistiria ao filme e que ficou um pouco intimidada com isso, porque sabia que precisavam tratar da história com sensibilidade. Mas por outro lado, explica que, como atriz, “você tem que permitir que sua criatividade e sua própria perspectiva entrem em jogo” e que a retratada, por sua vez, foi gentil e prestativa em todo o processo. Sofia complementa que ela estava na torcida por ambas. Cailee comenta:

“Acho que o que foi surpreendente ao ler o livro é que havia tantos tópicos e momentos universais pelos quais tantas jovens mulheres passam, e que eu adotei para mim mesma. Sabe, meu primeiro passo na preparação para um papel é pensar no que posso me relacionar com ele. Eu pensei que poderia ser complicado encontrar uma maneira de me encaixar mas, na verdade, a forma como ela conta a história no livro é tão emocional e ela compartilha tanto, esses momentos e esses pensamentos íntimos e esses sentimentos, e eles estão se apaixonando pela primeira vez e você se orienta por meio disso. Então você pode se perder no caminho e depois ter que juntar os pedaços quando tudo termina. É algo com o qual eu definitivamente senti que podia me identificar, e espero que outras pessoas também possam ver isso quando assistirem ao filme”.

Por fim, perguntei sobre senso de isolamento vivido pela personagem principal e muito enfatizado na direção de arte. A cenografia, por exemplo, usa decoração elaborada, estampas poluídas e tecidos pesados, o figurino revela o seu amadurecimento e a fotografia reforça a escuridão dos ambientes em que muitas cenas acontecem. Dessa forma, questionei como foi a colaboração com as equipes dos departamentos técnicos e o processo de criação com esses times. Cailee começou explicando que teve acesso a figurino, cabelo e maquiagem que definiu como sendo “incríveis” e que houve muita pesquisa envolvida para contar a história. Para a atriz:

“Isso foi realmente fundamental para eu me ancorar nas diferentes idades [retratadas] e também onde Priscilla estava emocionalmente durante essa jornada. E, sim, acho que nos filmes de Sofia, todos dão o seu melhor. Ela cria um ambiente tão colaborativo e tem uma presença muito calmante que acho que realmente ajuda quando você tem um desafio como este para enfrentar. Então, me senti sortuda nesse sentido. O filme realmente é feito por pessoas que são artistas e criativas ao nosso redor, que dedicam muito tempo, esforço, amor e cuidado, e atenção aos detalhes. Isso foi a chave para mim na construção dessa atuação”.

Ela afirma, ainda, que esses elementos a ajudaram a entender a jornada emocional da Priscilla e a influência de Elvis em seu estilo, desde as regras que ela seguia até o momento em que decidiu romper com elas. “Quando finalmente entrei na caracterização, percebi como isso afetava minha forma de me mover…”, explica, e Sofia comenta “Como uma super-heroína”. Ela concorda e continua:

“Quando você tem um penteado alto como uma colmeia no alto da sua cabeça, é basicamente como ter outra cabeça e uma bastante pesada. Então você acaba se movendo de maneira diferente. Não sobra muito espaço para alegria. [O figurino] foi a peça final e uma peça tão essencial, mais do que em qualquer outro papel que já interpretei, com certeza”.

Sofia comenta, a respeito dos adereços de cena e como eles comunicam sobre a personagem, que um de seus momentos favoritos é quando ela coloca os cílios postiços antes de entrar em trabalho de parto “porque isso diz muito sobre ela e as mulheres daquela época, e essa ideia glamourosa exagerada sobre as mulheres naquele tempo”. Além disso, Graceland, a casa de Elvis, é uma réplica inteiramente construída em Toronto, sob a batuta de sua diretora de arte Tamara Devereaux. “Tivemos um departamento de arte incrível”, continua a diretora, “Devereaux criou tudo, e não teríamos conseguido fazer o filme sem toda a sua criatividade. E Philippe Le Sourd, adoro trabalhar com ele. Ele é um ótimo diretor de fotografia e foi um ótimo parceiro para mim ao filmar e encontrar uma maneira de sempre conectar a câmera com a evolução emocional de Priscilla. Passamos muito tempo juntos no quarto de Graceland, encontrando nosso caminho e nossa estética, sempre tentando trazê-la de volta ao coração emocional da história, Ele é muito sensível. Ele é realmente um artista e se conecta com a parte emocional. É um grande aliado”. Com esse filme, o fotógrafo está em sua quarta colaboração com a diretora.

Finalizando sua fala, Sofia explica que ao longo de sua carreira aprendeu a seguir sua intuição e confiar em seus instintos na forma como trabalha as narrativas e a se conectar com os temas que a atraem, esperando que eles conectem, também, com as demais pessoas. Nesse caso, tentou equilibrar a presença dos personagens, de maneira que Elvis, mais famoso e tantas vezes retratado no cinema, não sobrepusesse a história de sua protagonista, permitindo ao público permanecer ao lado dela. Ela reflete sobre a razão de a história de Priscilla não ter sido narrada até agora, mesmo com a autobiografia publicada há quase quatro décadas e conclui:

“Sinto que há um momento em nossa cultura em que as pessoas estão abertas às histórias das mulheres. Há um pouco mais disso agora, acho. Ficamos surpresos com o quão pouco sabíamos sobre ela, sendo ela a metade de um casal tão famoso. E achei isso tão interessante agora, por sabermos tanto sobre ele, ver como foi para ela como sua parceira”.

E finaliza “Para mim, a parte mais importante é que ela é verdadeira consigo mesma. Ela foi verdadeira consigo mesma e percebeu que, embora parecesse que ela tinha a vida perfeita, na verdade não era o que ela queria. Quero dizer, ela tinha o ideal superficial, mas ela deixou tudo isso em um momento no início dos anos 1970 em que era muito difícil para uma mulher se divorciar de um homem poderoso sem ter uma renda própria. Ela tinha essa fé em algo, uma espécie de chamado dentro dela, que sabia que tinha a força necessária para encontrar sua própria identidade longe dele. Então, acho que há algo inspirador em sua história, que é nunca é tarde demais para descobrir sua verdadeira essência”.


O filme Priscilla estreia no Brasil em 4 de janeiro de 2024, com pré-estreias a partir de 26 de dezembro. Posteriormente será disponibilizado pelo serviço de streaming Mubi.


Agradeço a A24 e ao Globo de Ouro pela oportunidade de entrevista, realizada em ambiente virtual e editada visando melhor clareza.

Compartilhe
Share

Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *