Entrevistas

Entrevista com Flávia Castro (Deslembro)

No dia 20 de junho estreia nos cinemas brasileiros Deslembro, dirigido e roteirizado por Flávia Castro, com fotografia de Heloísa Passos. O filme conta a história de uma adolescente que volta ao Brasil com a família, do exílio em Paris, em 1980, após decretada a anistia. Ao chegar ao Rio de Janeiro, Joana (interpretada por Jeanne Boudier) busca se adaptar à cidade da qual pouco se lembra, buscando o contato com a avó paterna e as memórias de seu pai desaparecido durante a ditadura militar. Isabel Wittmann, pelo Feito por Elas, entrevistou a diretora por e-mail a respeito do filme.

A cineasta Flávia Castro. Foto: divulgação.

Feito por Elas – Deslembro parece um filme muito íntimo, muito pessoal. Durante o Festival do Rio você mencionou que esse era o contexto em que você cresceu. Como surgiu o interesse por escrever essa história e de onde veio a ideia de realizá-la? Além disso, como você decidiu que a protagonista seria uma adolescente?

Flávia Castro – A ideia do filme nasceu durante a montagem do Diário de Uma Busca, da vontade de ir mais fundo em um trabalho de memória no cinema. A ficção se impôs, porque queria um tipo de liberdade que o documentário não me permitia. A protagonista só poderia ser uma adolescente, pois uma das questões era “Como a gente se lembra?” e “Como se forma a memória, depois de ter tido uma infância fragmentada?” 

FpE – A questão do idioma e as várias formas de comunicação parecem ser importantes para você no filme, expressando o exílio, os acontecimentos em outros países da América Latina e as configurações familiares que daí resultam. Comente um pouco sobre isso. 

FC- A mistura de idiomas do filme corresponde a uma experiência pessoal, mas é uma experiência coletiva, acho que foi a de muitos exilados latino-americanos. E acho que é o tipo de vivência própria de quem imigra, e deve estar ocorrendo situações muito parecidas com os refugiados que chegam cada dia a Europa nestes tempos. O Caetano diz “minha língua é minha pátria”, mas às vezes, não existe uma pátria, mas existem várias línguas que se completam, que se chocam, que são um reflexo das situações e do movimento das pessoas. Em Deslembro, isso está nos diálogos, mas também lidos ou cantados: o filme se constrói muito em cima dessa trilha sonora linguística, né? Alguém me chamou  a atenção para o fato de que os três livros que Joana lê, também representam as três línguas que atravessam o filme: tem o português de Fernando Pessoa, o  francês do Flaubert, e o Cortázar no final. 

Cena de Deslembro. Foto: divulgação.

FpE – Como foi o trabalho de direção de arte na recriação daquele momento histórico, tanto dos espaços brasileiros como do parisiense?

FC – Desde o início, eu disse que não queria fazer reconstituição de época, que deveríamos ser mais impressionistas nessas recriações do que precisos ou meticulosos. O cenário, tudo que vemos no filme, corresponde ao estado emocional de Joana, a protagonista. Não existe “décor”, existem sensações que criam veias que atravessam paredes, cupins que tomam a casa da memória. Existe uma Paris com cores vibrantes, tropical, e um Rio de Janeiro em tons cinzas, invernal, exatamente como Joana percebia o Rio, e se sentia ao voltar para o Brasil. Aos poucos, a paleta de cores evolui… Desenvolver essas ideias com a Ana Paula Cardoso, diretora de arte, com a Renata Russo, figurinista e com a Helô Passos, foi maravilhoso e super prazeroso também. 

FpE – A proximidade de Joana com o rock, em detrimento da música brasileira, além das roupas escuras, tão pouco tropicais ou cariocas, são indicativos do deslocamento da menina na sua nova casa?

FC – Sim, são indicativos do seu deslocamento, mas acho que isso evolui ao longo do filme. Aos poucos, o quarto dela vai se enchendo de citações do Caetano, tem o samba que o Ernesto toca e canta para ela na praia, o Noel Rosa, o Caetano… e ela cantando Cajuína, ou seja: o presente está ai, chamando. E ela vai! Do jeito dela, com a bagagem que tem, mas vai…

FpE – Embora a escrita do roteiro seja anterior, ele acabou por se tornar praticamente uma reflexão sobre a política brasileira atual. Como você enxerga a possibilidade de reflexão do cotidiano por meio da arte? Qual sua opinião sobre os desafios em torno do fazer cinema no Brasil daqui para frente?

FC – Comecei o roteiro em 2009, mas foi um longo processo, reescrevi muito, e só rodamos no segundo semestre de 2017. Acho que um filme sempre se inscreve no presente de sua realização, e claro, ao estrear na Mostra de São Paulo entre os dois turnos das últimas eleições, o lugar que Deslembro ocupa é bem diferente do que eu imaginava:  se torna mais urgente do que nunca lembrar nossa história, fazer um trabalho de memória. É necessário resistir e reagir a negação da história que tem sido feita pelo Bolsonaro e por tanta gente que diz que “a ditadura foi boa”, enaltece torturadores. É necessário rebater. Acho que Deslembro, fala também de uma falta de memória coletiva. Precisamos seguir. Lembrando, criando. 

Cena de Deslembro. Foto: divulgação.

FpE – Fale um pouco sobre a presença feminina nas equipes do filme.

FC – Para mim foi uma das maiores alegrias do filme, trabalhar com essa equipe majoritariamente feminina! Não foi uma escolha feita em função do gênero, mas de afinidades criativas, mas o fato de todas as chefes de equipe serem mulheres mostra o quanto existem profissionais talentosíssimas no mercado. Mas ainda é  fundamental aumentar a nossa representatividade como mulheres em diversas áreas do audiovisual, e sobretudo das mulheres negras, das roteiristas e diretoras, por exemplo. 

FpE – Recomende aos nossos leitores uma diretora ou um filme dirigido por uma mulher que inspira você. 

FC – No ano passado, um dos filmes que mais me tocou foi escrito e dirigido por uma mulher: é o Lazaro Felice, da Alice Rohrwacher. Já gostava do filme anterior dela, As Maravilhas, mas este é um filme instigante, humanista, lindo e necessário. É difícil falar do filme sem contar a história, mas digamos que através do olhar de um personagem como Cândido do Voltaire – que tudo vê, sem julgar – mergulhamos na realidade da precarização do trabalho, da desumanização das relações, numa espécie de pós-capitalismo selvagem… Um desses filmes raros no qual a gente mergulha e sai diferente. Tá disponível na Netflix

Editora: Stephania Amaral

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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