
Lispectorante (2024)
Nove anos após explodir em cores e sons em Amor, Plástico e Barulho (2015) e três depois de se debruçar sobre os limites entre humano e máquina com o provocativo Carro Rei (2021), um filme que se posiciona de maneira bastante única em um panorama do cinema brasileiro, a cineasta Renata Pinheiro retorna com mais uma proposta visual inventiva em sua carreira. Dessa vez, em Lispectorante, temos a protagonista, Glória Hartman, uma mulher que volta para Recife em um momento de virada de sua vida.
Glória é artista e passa por turbulências financeiras. Ao mesmo tempo, ela terminou um relacionamento. O centro da cidade como lugar de memórias é um complemento à casa da tia, onde se instala. A construção antiga, repleta de objetos de outras eras, com as paredes cobertas de fotos de familiares, edifica na direção de arte de Joana Claude e Ananias de Caldas um espaço de camadas temporais, que vai se refletir na proposta fantástica da narrativa. O passado se desfaz por necessidade em meio a uma mesquinha contenda familiar.
É nessa geografia que a protagonista encontra o casarão em que havia vivido Clarice Lispector. A fachada com a tinta descascando e a pátina do tempo dão mostras de um cuidado que se ausenta, mesmo diante de um dos maiores nomes da literatura nacional. Embora citada por meio da arquitetura, a referência à escritora no filme não é direta: não se trata de uma adaptação de um texto dela. Mas existe uma busca por expressar o lirismo de uma voz lispectoriana (podemos dizer assim?), externando as angústias internas de Glória. É curioso como a escritora move o cinema especificamente de mulheres cineastas, de Ana Carolina a Marcela Lordy. Nesse sentido, o fato de Glória ser interpretada por Marcélia Cartaxo, como Macabéa em A Hora da Estrela (1985), é uma homenagem, mas também um reencontro.
São nas paredes mal conservadas e pelas frestas da porta de madeira que um passado se infiltra e se mistura ao futuro. Grace Passô se materializa como a atendente da banca de revistas futurista idealizada por Glória. O buraco escavado em frente a ela se abre como sítio arqueológico atemporal. Em certo momento um homem pergunta “você ainda tem lembranças?”, se referindo às memorabílias de festas. Mas quais seriam as lembranças possíveis nesse Recife de paredes insólitas, chão móvel, memórias e arte? A própria personagem brinca com a possibilidade das palavras, citando os álbuns de figurinhas de Perdidos no Espaço e Amar É. Se no primeiro esse espaço é cambiante e se suas memórias desprotegidas vagam na geografia incerta, no segundo onde cabe (e o que é) amar?
E não é que uma película tão sensorial e livremente ensaística busque respostas diretas, mas o amor encontra espaço no sexo sôfrego sob luz difusa. O amor é inspiração camp e delírios de Carmem Miranda. O amor é triste (será?) e habita corpos nômades e solidões melódicas.
Este não é um filme que propõe uma narrativa convencional. Há muita experimentação, um flerte genuíno com o fantástico e uma recusa em entregar respostas: às vezes o que parece ser, nem é, e o sabor está aí. Há um prazer imenso em se deixar mergulhar nos magentas e verdes urgentes e complementares fotografados com intensidade por Wilssa Esser. E ao mesmo tempo há um complexo controle estético e visual no aparente caos. De fato, Renata Pinheiro cada vez mais se mostra uma cineasta interessada nas possibilidades criativas do cinema como arte, que sempre encontra espaço, se libertando de certas convenções.
Nessa conjunção entre literatura, arquitetura, teatro e memória, Marcélia e Greice têm espaço para brilhar: um encontro de gigantes. A beleza da arte é essa: é trabalhosa, exige domínio e técnica, mas a pessoa artista a faz parecer fluida. E é aberta, num diálogo sem fim arte-artista-plateia. Em Lispectorante o que fica claro é que nesse processo, quem faz arte nunca a abandona (ainda que ela te abandone como um coelho de isopor levado pelo vento). E que amar é errante.



