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42ª Mostra de São Paulo- Maya

Esta crítica faz parte da cobertura da 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 18 e 31 de outubro na cidade. 

A cineasta Mia Hansen-Løve afirmou em uma entrevista, em 2016, que “eu nunca fiz um filme que fosse literalmente sobre minha vida“. Claro, literalmente seria perceptível demais e talvez, mesmo, pouco interessante para ela mesma. Mas é fato que toma emprestado de acontecimento de sua vida e de seus familiares para compor suas obras. Eden (2014) é inspirado pelas experiências de seu irmão como DJ. O Que Está Por Vir (L’avenir, 2016) reflete o divórcio de seus pais e sua mãe, professora de filosofia como a protagonista interpretada por Isabelle Huppert, chegou mesmo a ajudar a filha com os diálogos, tornando-os mais verossímeis.

Ela também comentou que talvez o que mais empreste de sua própria história tenha sido Adeus, Primeiro Amor (Un amour de jeunesse, 2011), em que a jovem personagem principal deixa para trás seu amor de adolescência quando entra para a faculdade e se apaixona pelo professor muitos anos mais velho, que passa a compartilhar com ela da mesma carreira. Mia começou em 2009 um relacionamento com o também cineasta Olivier Assayas, quando ela tinha 28 e ele 54 anos de idade. Eles se conheceram quando ela tinha dezessete e atuou em Fin août, début septembre, dirigido por ele. Pelos motivos apontados acima talvez não seja equivocado inferir que o término do relacionamento dos dois em 2016 motivou a feitura de Maya, seu mais recente filme.

O protagonista do filme é Gabriel (Roman Kolinka), um repórter de guerra francês que, após ter sido sequestrado na Síria, possivelmente pelo Estado Islâmico, e libertado, volta para casa. Magro e debilitado, não consegue ainda ver sentido em voltar ao trabalho e o relacionamento que tinha deixou de existir. As almofadas no sofá, em cores sólidas, formam a bandeira do seu país: uma azul, uma branca e uma vermelha, lado a lado. Embora o ator não consiga expressar o stress pós-traumático que seu personagem deve viver, somos levados a entender que é  pela falta de um lugar que lhe traga sossego em Paris que resolve voltar à terra de sua infância, Goa, na Índia, país onde sua mãe reside.

É lá que, aos trinta minutos de filme, conhece Maya (Aarshi Banerjee), personagem que embora seja seu título, não tem o protagonismo. Ela tem dezoito anos e é a filha de seu padrinho, Monty (Pathy Aiyar), um rico hoteleiro do local.

A casa da infância de Gabriel ainda está em pé e, após alguns cuidados, ele volta a ocupá-la, sendo informado por Maya que mafiosos locais estão ameaçando as pessoas para conseguir terrenos para a construção de condomínios. A questão do conflito pela terra e da especulação imobiliária é colocada pelo olhar exotizante do europeu.

Mas, pior que isso, a diretora, que também é responsável pelo roteiro, consegue se dedicar ao romance que se delineia sem jamais se preocupar com toda a política que ela mesma embute na história. Por que a inclusão do Estado Islâmico se ele não é usado depois na história? Por que fazê-lo sem abordar os nacionalismos (apenas pincelados na direção de arte, como mencionado), sem pensar nas relações entre Europa e Oriente Médio ou nas políticas de Estado que perpassam o tema? Por que transportar o romance para um local duplamente colonizado, pela presença portuguesa (que jamais é mencionada, ficando subentendida pelas práticas católicas retratadas) e pelo Império Britânico? Por que mesmo assim o personagem europeu vai a esse local e não questiona sua própria presença e os conflitos que ela gera?

Não é que nenhuma dessas questões obrigatoriamente precisem ser abordadas em filmes: o ponto é que os fatores que levam a elaboração delas são colocados mas não se desenvolvem. É preciso ter uma postura muito marcadamente eurocêntrica para achar que em meio a tudo que acontece no filme, só o que existe em termos narrativos é o romance.

E o pior é que ao ignorar quase todos os marcadores de diferença entre os personagens, empobrece o que poderia ter sido, talvez, um interessante estudo de relacionamento pós-colonial. Mas Gabriel nunca é colocado enquanto estrangeiro, enquanto colonizador, enquanto aquele que torna os locais “o outro” e os vê como bárbaros. Gabriel é colocado apenas como o homem mais velho e bastante insensível no tratamento com a jovem. Idade é a única característica que é levada em conta na disparidade entre ele e Maya, provavelmente para espelhar Hansen-Løve e Assayas. Mas esse é um paralelo equivocado quando se leva em conta essas outras categorias que se interseccionam sem nunca ser postas.

Maya, a personagem, acaba reduzida a uma moça local que sabe contar histórias e ser bonita e não muito mais que isso. Ela é criada como uma manic pixie dream girl colonial, a jovem mulher que faz o homem torturado esquecer de seus problemas e seguir com sua vida, mas posicionada numa estranha relação étnico-racial e de nacionalidade que nunca é colocada em xeque. A paisagem e as locações por onde passeiam, bem como a fotografia, são realmente belas, mas não sustentam um longa metragem que parece se acovardar diante de questões maiores. E Maya, o filme, termina reduzido a uma tentativa falha de deslocar um romance para um local paradisíaco, ao esquecer que isso traz em consequências narrativas.

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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