Entrevistas

“Meu avô foi meu primeiro ator”: diretor Leonardo Lacca fala sobre o documentário Seu Cavalcanti (2025)

Uma década separa Seu Cavalcanti (2025), novo trabalho de Leonardo Lacca, de seu longa anterior, Permanência (2015). Nesse intervalo, o diretor pernambucano se dedicou a curtas-metragens e manteve a bem-sucedida parceria com Kleber Mendonça Filho, iniciada em O Som ao Redor (2012), onde atuou como preparador de elenco. O peso desse tempo é sentido em Seu Cavalcanti, um documentário com toques de ficção que reúne imagens captadas ao longo de 14 anos do avô do realizador.

No filme, o protagonista é um idoso nonagenário apegado ao seu Fiat Uno, orgulhoso da neta que se forma em Direito e, por muito tempo, a única figura paterna de quem o filma. Brincando com a encenação, Lacca transporta para o espectador o fascínio que nutre pelos pequenos rituais do avô. Recentemente, o Feito por Elas teve a oportunidade de conversar com o diretor sobre o filme, que já está em cartaz em algumas cidades brasileiras.

Camila Henriques: Dá pra sentir que Seu Cavalcanti é um filme que precisou de tempo para existir, não apenas pelo intervalo de dez anos desde Permanência, mas pelo período de gravação mesmo. Eu queria que você falasse do peso que teve pra você colocar pro mundo uma história tão pessoal. 

Leonardo Lacca: Não foi nada planejado. Começou de uma forma muito despretensiosa. Nunca existiu, assim, uma pressão, porque eu não tinha exatamente um compromisso de fazer nada, assim. Na verdade, eu tava… Primeiro, eu nem sabia que eu estava fazendo um filme. Depois eu percebi e comecei realmente a ativamente fazer. Também, claro, existia uma vontade de terminar. Mas, ao mesmo tempo, existia uma vontade de continuar filmando, né? Eu dei graças a Deus por ter enveredado por essa profissão de também preparador de elenco, porque eu pude estar ativo cinematograficamente [nesse intervalo]. Se eu só fosse diretor e roteirista, eu tava lascado, assim. Eu estaria muito frustrado, porque é muito difícil você viabilizar um filme e demora tanto tempo. Eu fiz alguns curtas, por exemplo, na pandemia, que foi um momento difícil e tal, pra todo mundo, claro. Eu estive sempre ativo. Eu gostaria de ter feito outros filmes longos, tipo, de ficção e tal, propriamente dito. Tem esse esforço hercúleo de viabilizar o seu projeto da melhor forma. O Seu Cavalcanti, ele registra de uma maneira indireta, a minha carreira de cineasta, porque ele começa justamente com eu mantendo uma câmera da faculdade na minha casa enquanto a gente estava fazendo outra produção. Ela dormia lá, normal, porque você tirava ela durante uma semana, enfim. E aí, em algum momento, eu tive esse ímpeto de filmar meu avô. E até eu me vejo essa modificação, assim, de linguagem, modificação, não, essa transformação, essa evolução da linguagem, da minha linguagem e da imagem do que seria o digital. Porque a gente é de uma geração que não era fácil ter uma câmera nesse momento, no início dos anos 2000. Todo mundo hoje tem uma câmera, mas, naquela época…. Quem estava perto para eu filmar era meu avô, justamente por a gente morar junto, por essa intimidade.

Imagem: divulgação

Camila: Como você disse, todo o seu trabalho cinematográfico está nesse filme. A gente vê o Seu Cavalcanti sendo também ator ali. Tem aquela cena da perseguição maravilhosa, e tem Maeve Jinkings participando. Eu queria que você falasse, assim, de como surgiu essa escolha de brincar com essas fronteiras entre realidade e ficção, até no desfecho do filme, né?

Leonardo: Então, isso surge desde o início, porque eu não me considero documentarista. A minha vontade sempre foi de fazer ficção. Tanto é que essa vontade de trabalhar com atores é a parte que eu mais me identifico, mesmo como diretor. Na montagem, eu estou pelos atores. No corte, é pelos atores. Claro, o todo é importante demais. Todo mundo é importante, mas, para mim, a alma de todo filme, de todo projeto, são as pessoas que estão na frente da câmera. E eu acho que meu avô foi o meu primeiro ator. E um ator não profissional, mas que eu brincava com ele. É como se o filme fosse um convite, essa brincadeira, uma coisa lúdica entre eu e ele. Ele aceitou, não porque ele tinha interesse de ser um ator, mas pelo amor e pela relação. Eu levava ele para fazer figuração em vários filmes. A ficção sempre esteve presente, porque eu gostava de brincar com isso, pedir coisas para ele. Só que, claro, eu considero esse filme como um filme que foi escrito na montagem, porque eu ia para a montagem, aí tinha ideia, voltava, captava, voltava, captava, sabe? Nesse processo, assim, não existia um roteiro propriamente dito, assim, escrito. Só em uma das cenas eu escrevi um roteiro. Assim, uma cena eu escrevi e passei para as pessoas. Até com a presença de Maeve, eu tive muito diálogo com ela. Eu queria colocá-los para encenar de um jeito livre e dentro do que seriam esses personagens.

Camila: Eu estava pensando muito num outro filme que eu vi recentemente, não sei se você já assistiu, O Último Azul (2025), e eu senti que ele dialoga com o Seu Cavalcanti nessa saída do idoso daquela imagem do velhinho, sábio, fofinho, para a imagem de uma pessoa complexa, que tem vontades. Com 95 anos, ele gosta de pegar o carrinho dele e se sentir livre. E eu queria saber como foi para você construir esse retrato de um homem mais velho que ainda tem autonomia, que busca liberdade… Ele não para e vai dar conselho, aquela coisa clássica do idoso no cinema…

Leonardo: É interessante falar sobre isso, porque não foi exatamente planejado no sentido que eu acho que, sei lá, eu vou abordar esse tema do envelhecimento de uma maneira não repetitiva do que vem sendo abordado desse corpo idoso, a representação do corpo idoso no cinema. Eu nunca pensei sobre isso, eu confesso a você. Na verdade, isso foi feito de uma maneira intuitiva e muito relacionada com a própria personalidade do meu avô, que, com 90 e tantos anos, fazia planos para o futuro. Isso é uma coisa que eu achava linda e que me dava vontade de filmar essa forma como ele socializava com as pessoas, a forma como ele enxergava a vida, a forma como ele… Não tem nem essa coisa de não desistir, porque isso não é nem uma questão, ele tinha um vigor, realmente, uma saúde, uma vitalidade muito incrível e fascinante para mim. E aí, quando… É uma coincidência bem interessante estar lançando o Seu Cavalcanti perto do O Último Azul, porque acho que eles realmente dialogam de um jeito não óbvio e interessante. Tem até outro filme pernambucano também chamado Senhoritas (2024), de Mykaela Plotkin, que aborda esse tema também, de um jeito mais focado na sexualidade. Uma mulher mais velha e tal, não sei exatamente a idade, mas é uma idosa. E aí acho interessante que o cinema brasileiro esteja se debruçando de cada um da sua forma nessa temática e colocando um lugar que foge daquele velhinho que está sentado em uma cadeira, olhando a janela, esperando o tempo passar.

Camila: Ver ele sendo incomodado pela obra, como vai crescendo, é muito bacana essa construção da rotina, ele fazer a barba, ir para o carro…

Leonardo: Os sabonetes. 

Camila: Sabonetes estocados no carro, sensacional. Isso aí existia mesmo? 

Leonardo: Sim. Isso aí é totalmente… Não foi criado. 

Camila: E só para finalizar, o que você sente que mudou no teu modo de filmar depois desse trabalho tão pessoal?

Leonardo: Eu filmava de um jeito muito impulsivo, porque eu não queria perder o momento. Então eu botava a câmera onde desse. E, ao longo dos anos, eu fui planejando, já usei tripé. Esse filme tem todo tipo de proposta. É uma mistura muito grande. O que o filme me impacta como cineasta acho que tem a ver com a questão da comédia, que é uma coisa que eu sempre quis fazer na minha vida, assim como realizador. Esse filme, de uma maneira totalmente não proposital, virou uma comédia. Eu percebi que ele era uma comédia ao longo do processo. Então ele me impacta nesse sentido de querer botar para frente essa linguagem, de querer explorar mais essa linguagem, apesar de que meu próximo filme não é uma comédia. É como se ele me instigasse para um lugar que eu sempre quis. E é engraçado, porque algumas pessoas que me conhecem há muitos anos dizem assim, “esse é o filme que mais é a sua cara”. E a comédia está também na narração, está em muitos lugares, está nele, mas está na construção, na concatenação de imagens.

Crítica de cinema, membra da Abraccine, amazonense, 30+, ama novela mexicana

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