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Retratos Fantasmas

Depois de três longas de ficção que o consolidaram entre os grandes nomes do cinema brasileiro, o cineasta Kleber Mendonça Filho retorna ao documentário para narrar uma história de ascensão e queda: a dos cinemas de rua, especificamente em sua cidade natal, Recife. Dividido em três capítulos, Retratos Fantasmas (2023) é um ode às imagens como documentos históricos e como a possibilidade de perpetuar memórias.

O primeiro capítulo, sobre sua mãe, é de uma conexão íntima entre pessoa, lugar e imagem. Por meio de registros que vão de fotografias, passando por filmagens caseiras, e até vários de seus filmes, conhecemos o apartamento que foi sua casa por quarenta anos e onde ela se reinventou após se divorciar de seu pai. Curiosamente era historiadora, ou seja, também ela se debruçava sobre registros passados para mantê-los vivos no presente.

O título do filme, muito adequado, é reforçado na montagem que sobrepõe vivências reais e ficcionais no mesmo espaço. Kleber ainda jovem, seus amigos, sua esposa Emilie, Maeve Jinkings, os vizinhos, suas primeiras experimentações com a câmera: épocas diferentes se sobrepõem como espectros desse lugar que é casa e é cenário. Nesse momento, uma familiaridade com a obra do diretor é útil, uma vez que ele cita nomes casualmente sem maiores explicações. São muitos detalhes que se costuram nesse espaço com habilidade, desdobrando em coletivo o campo pessoal.

Mas confesso que de todos os espectros, o que mais me deixou pensativa foi o de Nuno, o cachorro dos vizinhos. Kleber relata que certo dia ouviu os latidos dos cachorro, mas ele já havia morrido há alguns anos. Então percebeu que O Som ao Redor (2012) estava passando na TV aberta e os vizinhos estavam assistindo. Se fosse comigo, um cachorro de quem fui tutora e que já morreu passando na televisão, me desmancharia em lágrimas. O cinema como um retrato que persiste. Quantas vezes assistimos a um filme em que todas as pessoas registradas já morreram? Ou, ainda, pensando nas imagens como um todo, e nosso celular, que apita todos os dias com lembranças de fotografias em aplicativos diversos, que ano a ano se reforçam como um mausoléu daqueles que se foram?

Mas toda essa introdução serve para chegar ao segundo capítulo, central ao filme: uma rememoração dos cinemas de rua. Com um mapa afetivo que localiza aqueles que costumava frequentar, Kleber nos apresenta para a geografia do Recife das memórias, e as imagens presentes, das ruas abandonadas e espaços fechados, são um triste contraste com tudo que era possível viver naquele espaço.

A narração hesitante em primeira pessoa demonstra um certo desconforto do cineasta em ocupar os holofotes. Afinal, as estrelas são as antigas salas de projeção. Com suas arquiteturas art decó e art nouveau, que refletem o período de ouro desses negócios, é realmente fácil compará-las com templos de adoração às imagens estelares que tremeluziam em grandiosidade sobre a tela. O cinema, como fantasma do passado, é uma arquitetura (do) que se foi. De minha parte, é impossível não pensar nas configurações espaciais que ordenam as sociabilidades, especialmente agora, morando em uma cidade cuja história não entendo completamente, observando seus prédios e tentando dar conta de um sentido que eles criam.

Embora a narrativa diga respeito especificamente ao Recife, talvez possa ser uma história universal (mesmo que esse conceito seja uma impossibilidade). Quase todo centro de cidade e quase toda pessoa jovem e cinéfila tinha o seu Cine São Luiz. O meu, eu já contei, era o Cine Busch. Onde será que está, hoje, seu projetor? Será que também virou sucata? Impressiona a quantidade de filmagens que o cineasta realizou ainda na década de 1990, como que já antevendo uma despedida.

Filmes sobre cinema costumam mexer comigo. Cinema é parte da minha experiência de crescer e de viver. E a arquitetura dos lugares é aquilo que, inconscientemente, organiza nossa relação com nossas experiências ali vividas. Muitas pessoas têm apontado que esse parece ser o filme mais pessoal de Kleber Mendonça Filho. E deve ser mesmo, porque só quem sentiu um lugar assim sabe como é. A forma como ele orquestra fotos e vídeos, dele e de terceiros, trazendo essas visões do passado, é instigante em sua capacidade de nos fazer projetar experiências compartilhadas. Retratos Fantasmas é cinema-vivência.

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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