Sansa Stark e o ódio pelo feminino
Em Game of Thrones, tanto nos livros como na série, Sansa Stark (interpretada por Sophie Turner) sempre foi uma personagem odiada pelo público em geral. Agora, com o avançar das temporadas e a evolução dos personagens, fica claro que sua trajetória de crescimento é uma das mais coerentes, sem mudar quem ela sempre foi.
O ódio por ela sempre foi pautado em misoginia e repúdio por tudo que é tradicionalmente feminino. Sansa, que no começo da história nos livros tem onze anos, foi desprezada (e apelidada de “Sonsa”) basicamente porque gostava de bolos de limão, de vestidos bonitos e de fazer bordados, sonhando com um casamento futuro. Mas Sansa era uma criança que foi ensinada que, pelo contexto e sendo a filha mais velha de uma casa de nobres, o casamento era seu destino final. Costuras e bordados são atividades entendidas como femininas (ainda que os grandes nomes da moda, que lucram bilhões, sejam homens- por que será?). Muitas de nossas avós e nossas bisavós resistiram usando as agulhas como arma. Trabalharam e sustentaram a casa e os filhos costurando e bordando. O cuidado é entendido como fraqueza, a dedicação silenciosa é tratada como passividade. Não existe demérito algum em uma atividade só porque ela é delegada ao espaço do feminino.
Enquanto isso Arya (Maisie Williams), sua irmã, que nos livros tem apenas nove anos de idade quando a história começa, sempre foi adorada por querer resolver tudo com a ponta de sua espada. Ela é tida como uma das personagens preferidas do público. Realmente é uma personagem notável, cheia de iniciativa e que passa por experiências de crescimento diferentes das de Sansa. Mas Arya também é uma criança, e uma que está traumatizada e não encontra conforto e carinho em lugar nenhum . Nesse caso a violência, vinculada à força e entendida como masculina, é saudada, mesmo que por vezes flerte com a psicopatia (afinal não é normal uma criança decorar uma lista de pessoas que deseja matar, literalmente, mesmo que na sua cabeça isso pareça justificado). Arya é uma ótima personagem, com um desenvolvimento interessante nos livros, mas parece que o público se apegou a ela mais pelo seu espírito bélico do que pelo tratamento que é conferido na escrita sobre sua psique.
Se Sansa cometeu erros? Mas é claro! Errou porque ainda não conhecia, vivendo em uma família amorosa, as capacidades de maquinação e de crueldade de terceiros. Errou porque pessoas erram mesmo. Isso faz parte do desenvolvimento de uma personagem bem escrita: a ausência de falhas cria uma Mary Sue ou um Gary Stu com que é difícil de se relacionar. Basta ver Jon Snow, que hoje se resume basicamente a ser um Gary Stu e causa enorme incômodo sua jornada sem percalços.
No último episódio (S08e04 The Last Of The Starks), os roteiristas, David Benioff e D.B. Weiss , colocaram na boca da Sansa uma fala dizendo que ela está onde está e é quem é, deixando de ser um “passarinho”, porque passou pelas mãos de homens tiranos que a violentaram e a estupraram. A impressão que fica é que eles não sabem que material tinham nas mãos. Sansa amadureceu primeiro porque cresceu, claro, como todos os personagens que eram só crianças no começo do livro ou da série. Mas ela também amadureceu porque conviveu com mulheres que lhe ensinaram muito: com Catelyn aprendeu como ser uma lady do Norte, com Cersei aprendeu os meandros do jogo político, com Margaery aprendeu como ser uma rainha para seu povo e juntando tudo isso, aprendeu como sobreviver. Sua trajetória sempre foi marcada pela observação e pelo aprendizado. Ela foi a personagem que sobreviveu aos piores algozes, mas não é isso que a define. Parece um fetiche de roteiro para certos homens a ideia de que uma mulher só é capaz de encontrar sua força depois que passa por violência extrema. É um tropo raso e batido, que infelizmente ainda é usado à exaustão. David Benioff e D.B. Weiss, têm inclusive um histórico de decisões duvidosas quando se trata da forma como desenvolvem a trama, especialmente no que tange à mulheres e aos personagens que não são brancos, e já algumas vezes utilizaram de estupros (ausentes dos livros) como escada e, pior, às vezes para motivar os homens em torno das mulheres violentadas, sem sequer dar espaço para a dor delas.
Odiar Sansa na primeira temporada era fácil, porque ela representava tudo que a sociedade despreza. Quando James Cameron diz que ele criou um ícone feminista em Sarah Connor, ele está primeiro sendo raso, segundo reafirmando a ideia de que para uma mulher ser admirável, precisa abrir mão de tudo que é vinculado à feminilidade, uma vez que atributos ligados à masculinidade são venerados. É fácil aplaudir mulheres guerreiras, mulheres que vão à fisicamente à luta porque a violência marcada como masculina é um algo normalizado e preferido. Essas personagens também precisam existir, porque mostram que há outras formas de performar a mulheridade e nem sempre ela está vinculada à feminilidade tradicional. Mas é muito mais difícil admirar atributos entendidos como femininos em uma sociedade que odeia a feminilidade. Mesmo a estratégia e o trabalho intelectual são admirados quando partem de personagens como Tyrion por exemplo, que não por acaso é homem. Mas quando uma mulher se dedica a isso, acaba sendo julgada como apática e sem iniciativa, como se o ataque físico fosse a única saída.
Sansa Stark não era odiosa na primeira temporada de Game of Thrones: ela era uma menina ensinada a se portar da forma como a sociedade dela (e a nossa, espelhada na ficção) espera que ela se comporte. E se por um lado desobedecer a esse padrão significa se tornar passível de críticas (“senta direito, se comporta como uma mocinha”), por outro, estar dentro dele significa entrar no reino daquilo é desprezado como fraco. O crescimento da personagem dado sua idade inicial, obviamente viria. E veio, por seus próprios aprendizados e pela convivência com outras mulheres adultas que tinham vivências para lhe passar. Não é a violência que ensina, nem ela deixou de ser a lady que deseja se tornar. Mas se mostrou, nesse processo, uma estrategista com grande capacidade política, com um ótimo desenvolvimento (mesmo que os roteiristas não percebam isso).
P.S. Espero que D&D não caguem com a personagem no final.
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