Críticas e indicações

Um passeio no MASP e algumas reflexões

Texto publicado originalmente na newsletter para assinantes do financiamento coletivo do Feito por Elas. Para contribuir, assine aqui.


Três meses atrás eu visitei o MASP (Museu de Arte de São Paulo). Embora na rinha de museus da cidade minha preferência seja a Pinacoteca de São Paulo, sou fascinada pelo vão livre projetado pela Lina Bo Bardi, cujos pilares, na atual reforma, abandonaram o vermelho que os cobriam desde os anos 90 e voltaram ao cinza do concreto armado original. 

Uma adolescente interiorana conhecendo o MASP em novembro de 2002: meu irmão, a amiga de meus pais, eu e uma sobrinha dela

Quando me mudei para a cidade eu passeei por ele incontáveis vezes. Sozinha algumas, mas também quando alguma pessoa amiga passava por aqui e queria conhecê-lo, sempre ia junto. Cheguei ao ponto de decorar todo o acervo. Quando andei pela primeira vez no museu, em 2002, estava conhecendo São Paulo com amigos paulistanos de meus pais. Na época o acervo não estava disposto conforme o projeto de Lina: se utilizava biombos para criar saletas que definiam a rota de quem visitava. Já morando aqui, os biombos haviam sido retirados. O projeto da Lina previa o salão amplo e sem divisórias e as obras expostas e cavaletes ou murais transparentes. Peguei uma foto no site do próprio museu pra exemplificar pra quem não conhece (abaixo).

Depois que os cavaletes originais foram restituídos ao uso, as obras passaram a ser expostas mais ou menos em ordem cronológica. Pois bem, como, eu já tinha decorado o acervo todo, certa feita, em 2018, acompanhando um amigo que visitava pela primeira vez, me inspirei na arte (abaixo) que as Guerrilla Girls fizeram no Metropolitan Museum em Nova York (MET). Comecei a contar quantos quadros eram pintados por mulheres. E aí eu escrevi no meu blog da época:

“No começo estão expostas esculturas chinesas e urnas funerárias marajoaras, de maneira descontextualizada. A autoria é anônima e não pude deixar de lembrar da frase de Virginia Woolf: “Por muito tempo na história, anônimo era uma mulher”.

Depois disso começa uma sequência de pintores europeus, ordenados mais ou menos de forma cronológica. Os primeiros brasileiros eram academicistas, de escolas europeizantes. Todos os autores identificados na primeira metade da exposição são homens. Quase todos são brancos. Tudo atendendo a uma concepção hegemônica do que é essa “arte de verdade”, a que merece ser exposta, a que tem valor.

Na décima primeira fileira do acervo, já no século XX, A Estudante, de Anita Malfati se destaca como a primeira obra de autoria feminina. A ela se seguem os quadros Guitarrista e Duas Figuras Femininas, de Marie Laurencin; Moças do Boulevard Raspail, de Noêmia Mourão; Velório da Noiva, de Maria Auxiliadora da Silva; a fotografia Sem Título de Barbara Wagner e, por fim, o vídeo O Século, de Cinthia Marcelle em co-autoria com Tiago Mata Machado. Isso mesmo: dentre cento e cinquenta e quatro obras que contei no acervo principal, apenas seis eram de autoria feminina.

A Estudante (1915-1916), de Anita Malfati

Aí eu lembrei daquela campanha das Guerrilla Girls a respeito do MET (Metropolitan Museum of Art, em Nova York). No cartaz, chamam atenção para o fato de que menos de 5% dos artistas expostos são mulheres, mas 85% dos nus são femininos. No MASP temos uma porcentagem ainda menor de mulheres artistas expostas. Não cheguei a contar a porcentagem de nus que são femininos, mas os únicos masculinos são uns quadros de Jesus morto e um ou outro querubim rechonchudo (se é que esses últimos podem ser considerados masculinos).

Não existe uma conclusão para esse texto. O que eu fico pensando é como esses locais validados enquanto instituição, que definem o que é arte e o que não é e qual é a arte digna de exibição e qual é indigna, lidam com a diversidade de artistas presentes no mundo. E como isso afeta o modo como crescemos e somos ensinados a criar arte, consumir arte, apreciar arte, já que o que é divulgado são as obras de autores majoritariamente brancos e homens. Podemos aprecia-las, podemos nos conectar a elas, mas temos que ter consciência do que está lá fora desses espaços de exclusão”.

(WITTMANN, 12/09/2017)

Eu visitei o museu mais algumas vezes antes da pandemia e nada havia mudado. Bom, qual não foi minha surpresa ao retornar e ver que as próprias Guerrilla Girls passaram por lá e agora marcam a abertura da exposição de forma triunfante. A versão brasileira do cartaz informa que 6% das pessoas expostas são mulheres (incrivelmente um número melhor que do MET e ainda melhor que o do próprio MASP 5 anos atrás).

Mas o que achei mais interessante é que parece ter havido um esforço real por parte da curadoria em mudar a lógica da exposição. Cai a ordem cronológica e agora entramos direto em uma seleção de artistas brasileiros contemporâneos. Muitos são representantes de artes não-academicistas, artes que são chamadas de “populares”. O que cria toda uma nova perspectiva sobre o que pode e o que não pode entrar em um museu.

Quer ver um francês impressionista? Vai pra última fila. Literalmente. Porque é aquilo: para muita gente, eu inclusa, um museu como esse é a única oportunidade de ver os “clássicos” da arte ao vivo. Eles não precisam, nem devem, sair do acervo. É interessante que permaneçam, até para acesso (e discussão) de um certo cânone. Mas mudar a lógica de exibição para que o protagonismo seja da arte brasileira me deixou feliz com o resultado. Agora só falta mais mulheres, para além da autocrítica curada. 


Falando em MASP, para quem estiver em São Paulo recomendo especialmente duas exposições que estão lá. Uma é Lia D Castro: Em todo e nenhum lugar, que, segundo definição do site “investiga como as relações de raça, classe, gênero e sexualidade se dão em situações de intimidade e vulnerabilidade”. A artista se prostitui como parte do processo de criação. Um conjunto de suas obras que achei particularmente marcante (e que esqueci de registrar em foto) são quadrinhos realizados nesse contexto. Ela relata que leva livros para os programas e lê junto com os clientes. Cada quadro tem uma polaroid de uma parte do corpo do homem em questão, uma foto do livro lido durante o encontro e a camisinha utilizada.

Fiquei pensando no podcast É tudo culpa da cultura. Em um episódio recente, sobre Festas de Orgia, o antropólogo Victor Hugo Barreto reflete sobre como pesquisar quando seu corpo está implicado no campo, como era seu caso. Seja em espaços de prostituição, saunas ou festas, inevitavelmente ele passou por, pelo menos, uma passada de mão. E é uma escolha ativa da pessoa pesquisadora seu recorte, seu campo e se colocar nessa situação, ainda que não tenha exatamente controle sobre o resultado. Bem, nessa caso, a artista usa da prostituição como meio de se aproximar desses homens e registrá-los, produzindo esses quadrinhos que, de alguma forma, são muito fortes e marcantes.

Também indico a exposição Catherine Opie: O gênero do retrato, da fotógrafa estadunidense de mesmo nome. As fotos são muito íntimas e ternas, brincam com as convenções da história da arte sobre retratos, desafiando-as com uma perspectiva queer e o resultado é muito bonito (imagens acima).

Compartilhe
Share

Projeto para discutir, criticar e divulgar os trabalhos de mulheres no cinema.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *