O CACTO DE RICARDO KUMP
Cinema,  Críticas e indicações,  Filmes

Visões e Metamorfoses: Um Dia no Festival Lanterna Mágica

O segundo dia de cobertura do Festival Lanterna Mágica revelou-se uma jornada cinematográfica. Os curtas exibidos na Competitiva Nacional se destacaram pela riqueza em diversidade narrativa e técnica. entre os filmes exibidos tivemos muitas produções realizadas durante o período da pandemia de COVID-19, curtas universitários, realizados como projetos de conclusão de curso, bem como filmes que inicialmente foram pensados para ser no formato live-action. Como consequência dessa gama de possibilidades, a sessão do segundo dia de festival ofereceu ao público uma experiência imersiva e reflexiva através dos filmes exibidos e de suas inúmeras técnicas.

Os filmes exibidos na programação do dia 20 de março foram:

  • Diafragma; Robson Cavalcante (AL) 10’00”
  • Jussara; Camila Ribeiro (BA) 08’41”
  • A cabeça e o corpo; Val Dobler e Mirian Miranda (SC) 05’45”
  • Carcinização; de Denis Souza (RS) 10’00”
  • O Cacto; Ricardo Kump (SP) 10’25”
  • Curacanga; de Mateus di Mambro (BA) 18’00”

A sessão teve início com Diafragma, uma obra que mergulha na temática da perda da visão. Dirigido por Robson Cavalcante, o filme nos transporta para a memória do protagonista que nos relata como foi progressivamente perdendo a sua visão. Além de abordar o diagnóstico sobre a possível cegueira, o vício em colírios e a paixão à primeira vista por sua futura esposa, a animação tenta dar forma a maneira como o enxergar se esvai. O avanço da doença aparece na forma de moscas vagando no campo de visão e estas mesmas moscas, como o passar do tempo, carregam pedaços de paredes de tijolos, evocando uma sensação de desconexão e desorientação, ao mesmo tempo que estabelecendo que uma barreira se forma naqueles olhos. Ao fim, entre algumas imagens que aparecem para falar da cegueira a mais óbvia, mas não menos atrativa para mim – uma câmera fotográfica engaiolada – ressoa como metáfora da limitação visual, enquanto os pequenos insetos que voadores fragmentação a cada aparição reconfiguram ainda a realidade.

Em seguida, Jussara, animação dirigida por Camila Ribeiro evoca a poesia existente na transmissão de conhecimento. Assim como essa transmissão, a preservação da memória emerge como tema central, personificados pela personagem principal, visualmente inspirada em Conceição Evaristo. A técnica de ilustração em aquarela adiciona uma camada de delicadeza à história. Entretanto, em mim fica o incômodo de que Jussara não tenha uma voz e sim emita sons ininteligíveis que deixam espaço para que o que ela diz seja interpretado como irrelevante. A tentativa de falar com o público sobre a importância do conhecimento adquirido por meio das narrativas, impressas em livros e/ou transmitidas na oralidade, sejam elas ficções ou não, se perde na contenção da ausência de diálogos ou de narração. Dessa maneira, o que poderia funcionar como uma capacidade de tocar o espectador de forma emocional e intelectual desaparece no desenvolver do curta, ao ser abordado de maneira tímida.

Em A Cabeça e o Corpo, dirigido por Val Dobler e Mirian Miranda, o público é convidado a refletir sobre as complexidades dos corpos dissidentes e suas interconexões. A personagem protagonista possui uma cabeça que em um certo momento não se conecta ao seu corpo, logo uma parte se separa da outra e parte em busca de novas possibilidades de existência. A desconstrução e reconstrução identitária, os processos de pertencimento e desapego são explorados de maneira provocativa. Os corpos animados representados pelo desenho são diversos e assim como o corpo protagonista exploram sua existência separados da cabeça.

Por ter conhecido as pessoas realizadoras do curta antes da sessão, ao ver a produção refleti muito sobre corpos transgêneros e possíveis conflitos que pessoas trans vivenciam ao longo de sua vida. Entretanto o dialogo proposto por Val e Mirian alcançam muitas outras experiências ao contrapor lugares comuns binários (razão x sentimento; certo x errado; bem x mal; etc.) e principalmente ao conseguir em quase seis minutos demonstrar que viver, existir, não cabe em uma lógica de pontos opostos, preto no branco, mas sim em todo o caminho cinzento existente. E devo destacar que o curta é uma produção de conclusão de curso, muito bem executada, atraente visualmente e bem madura no que propôs apresentar, podendo ser lido como algo visceral, e que desafia as convenções sociais e culturais.

Em contraponto, Carcinização, dirigido por Denis Souza, nos mergulha em uma jornada existencialista, acompanhando uma personagem em sua busca pela metamorfose – em um caranguejo. A maneira com a qual Denis apresenta seu trabalho ecoa aspectos da narrativa de histórias em quadrinho, usando do movimento na tela recortado por enquadramentos estáticos (janelas) pelas quais as personagens se movem e/ou dialogam. Apenas a narração e voz das personagens em alguns momentos parecem representar pessoas constantemente apáticas, o que pode afetar o pacto entre público e narrativa de que aquelas personagens estão sendo motivadas a passar por alguma mudança. Ainda assim, um curta muito criativo, pois assim como A Cabeça e o Corpo, é uma produção de estudantes universitários recém formados que apresenta maturidade na concepção e execução das ideias. Ambas produções vislumbram como a próxima geração de animadores brasileiros vem cheia de

A narrativa absorve o público em um mundo de absurdos e transformações, questionando as noções de identidade e desejo de pertencimento. As personagens são jovens com dúvidas sobre quais rumos seguir na vida e a constante incerteza de que não conseguirão fazer nada. O que faltou para que a animação tivesse uma força maior foi uma dublagem com entonações mais variadas, talvez mais espontâneas. Ainda que temos em cena três pessoas desanimadas pelas incertezas do início da vida adulta, a ideia transmitida pelas vozes de que eles estavam apáticos constantemente, não permitiu que eu “comprasse” as reações deles aos conflitos que confrontavam.

O Cacto, dirigido por Ricardo Kump, é uma adaptação inspirada no conto Ser Pó de Santiago Dabove. A história do homem planta, transformado em morto-vivo, ecoa como uma reflexão sobre a condição humana e a transitoriedade da vida. As imagens áridas do deserto e a presença onipresente de uma metamorfose homem-cacto conferem à obra uma atmosfera sombria e melancólica.

[…] A hemiplegia, a paralisia que havia tempos me ameaçava, derrubou-me do cavalo. Assim que caí, este se pôs a pastar por algum tempo e logo se afastou. Ficava eu abandonado nesta estrada solitária por onde acontece de nenhum ser humano passar em muitos dias. Sem maldizer meu destino, pois a maldição se gastara em minha boca e já não representava nada.

Trecho de Ser Pó, do autor Santiago Dabrove (publicado na Revista Piauí, em 2009)

A produção foi exibida em festivais de cinema de gênero como Animafest Zagreb, Annecy Festival, Cinefantasy e Fantaspoa. Além de uma trama curiosa e angustiante, O Cacto apresenta aspectos visuais que mesclam técnicas de pintura, colagem, desenho, etc. proporcionando maior estranhamento do que nos confronta na tela. O estilo artístico de Kump é influenciado por escolas e movimentos das artes visuais, como as colagens dadaístas de Tristan Tzara e as imagens expressionistas com cores sobrepostas e grossas camadas de tinta de Ernst Ludwig Kirchner, bem como pela visão subjetiva de F. W. Murnau, no trato da imagem e na construção de sua personagem, uma figura deformada tanto em seu interior quanto em seu exterior.

Finalmente, Curacanga, dirigido por Mateus di Mambro, apresenta o mito do povo de Santa Maria da Vitória, no estado da Bahia. O filme marcado por traços simples e apenas quatro cores (preto, branco, cinza e vermelho) explora o estranhamento provocado por uma criatura que tem a forma de uma cabeça flamejante e que ataca moradores da cidade. No debate que ocorreu após a exibição a diretora de arte apontou o quanto fez uso de elementos do catolicismo como maneira de reforçar os terrores gerados pela criatura no protagonista. Elementos como a estátua de São Jorge e um rosário acentuam a ideia de que uma luta contra o mal está sendo travada, além de sutilmente apresentar dogmas relacionados ao fato do monstro Curacanga ser uma mulher amaldiçoada por se relacionar amorosamente com um padre. O filme, financiado através da lei de incentivo, tem uma abordagem perspicaz sobre as relações entre religião, cultura, romance e cinema de horror brasileiro, influenciado pela tradição oral.

Em suma, o segundo dia de cobertura do Festival Lanterna Mágica foi marcado pela diversidade temática e estilística. O público caminhou por uma rica tapeçaria de experiências audiovisuais. Cada filme, à sua maneira, proporcionou um mergulho em mundos alternativos e a escolha da curadoria ao programar os seis curtas na mesma sessão os conectou por meio de temas que exploraram a complexidade da condição humana.

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Artista visual, desenhista, graduanda em Letras - Tecnologias da Edição. Membro Abraccine, votante do Globo de Ouro (Golden Globe Awards). Pesquisadora de cinema, principalmente do gênero fantástico, bem como representação e representatividade de pessoas negras no cinema. Devota da santíssima trindade Tarkovski-Kubrick-Lynch.

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