MANU SONHA COM ONCAS - Mostra Nacional
Cinema,  Críticas e indicações,  Filmes

Um dia, uma viagem cinematográfica por mundos encantados

Posso comparar um dia no Festival Lanterna Mágica com uma jornada através de portais mágicos. Cada encontro, conversa, sessão… cada produção é um portal para um mundo novo e surpreendente. Na mostra competitiva deste ano, uma seleção eclética de obras me cativou e encantou, pois o trabalho da curadoria e programação ofereceu uma gama de perspectivas e experiências cinematográficas.

Os filmes exibidos na programação do dia 22 de março foram:

  • Quintal; Mariana Netto (BA) 15’00”
  • Maréu; Nicole Schlegel (RJ) 10’30”
  • Ciranda Feiticeira; Lula Gonzaga e Tiago Delácio (PE) 08’00”
  • Bug; Andrey Oliver, Enzo Bonini, Julia Marques, Marina Lobo e Pedro Mancini (SP) 08’23”
  • Palavras Mágicas; Carlon Hardt (PR) 02’51”
  • Manu Sonha com Onças; Daniel Oliveira Garcia (RJ) 05’16”
  • Tardes no Escarafuncha; Fernando Ferreira Garróz (SP) 11’59”

A sessão teve início com Quintal, dirigida por Mariana Netto, uma ode à natureza e à urbanidade. O filme nos transporta para um universo animado no qual o verde dos parques contrasta com a cinzenta paisagem urbana. Em um dia comum, a música emerge como uma fonte de tranquilidade para uma criança, que aprecia o canto dos pássaros. Entretanto, enquanto a garota se conecta aos elementos da natureza em busca da música que existe dentro de si, os sons da cidade a afetam com suas formas de ruído.

Tal qual o pássaro que dialoga com ela, a criatividade da protagonista se encontra cerceada em linha de partitura que a privam da possibilidade de uma criação espontânea. Mas, ao entender a melhor maneira de existir nesse ambiente de concreto promovendo a pulsão da natureza, os sons, antes poluição sonora, são decifrados e transformados em composições criativas. A metáfora de enjaular um passarinho ressoa como um chamado para liberar a criatividade aprisionada nas estruturas da sociedade moderna.

Logo em seguida, Maréu, dirigido por Nicole Schlegel, nos convida a mergulhar na intimidade de uma garota e sua coleção de conchas. Em uma breve conversa com a diretora, após a sessão, descobri que a relação da protagonista com o mar e as conchas são referência a histórias de infância da realizadora. A poética interação entre a criança, as conchas e o mar desvenda um espaço de criatividade e conexão com a natureza.

O sono enquanto espaço de descanso é também um diálogo entre o mar e a menina no terreno onírico. Induzido pelo som das conchas, acompanhamos o respeito pela vida – delicadamente expressado quando a criança colhe as conchas, as dispõem juntas, próximas a linha que as ondas alcança e pergunta ao mar se pode levar aquela parte dele para casa – sendo, portanto, eco da harmonia com a natureza e da preservação ambiental.

Ciranda Feiticeira, dirigido por Lula Gonzaga e Tiago Delácio, teve como ponto de partida uma história bem pessoal dos autores. A produção remonta ao ano de 1983, quando Lula e Silvana Delácio viveram na Ilha de Itamaracá, em Pernambuco, imersos nas tradições dos pescadores e nas canções de Lia. O projeto começou a ser concebido na areia da praia, onde Lula esboçou o storyboard, inspirado pelas narrativas locais. Quatro décadas depois, em 2017 após a redescoberta dos esboços originais por Tiago Delácio,uma equipe de animadores deu vida aos desenhos originais, realizando um curta metragem carregado de poesia e simbolismo.

O filme parte da jornada emocional de Janaína, uma criança que logo na infância é confrontada com a morte da mãe até seu amadurecer. As características culturais, ambientais e geográficas da Ilha de Itamaracá ressoa através dos elementos simbólicos como o barco de pesca, o tear da rede, o caju, o mar e as conchas, criando um retrato tocante e humano do ciclo da vida. A trilha sonora, homônima ao curta, gravada por Lia de Itamaracá em 1977, complementa a atmosfera encantadora do filme.

Em seguida, foi exibido Bug, uma animação dirigida por Andrey Oliver, Enzo Bonini, Julia Marques, Marina Lobo e Pedro Mancini. A produção nos transporta para um mundo pós-apocalíptico, habitado por um robô que percorre o esqueleto da metrópole resgatando e catalogando objetos diversos, aao mesmo tempos que cuida de diversas espécies da fauna local. O filme, desenvolvido em 3D, buscou o realismo em sua estética e conseguiu por meio dessa escolha, inserir o espectador em um futuro triste, mas visualmente possível. Um futuro que visualmente cria imagens semelhantes a lugares reais, ainda existentes, que já vivem o efeito do abandono e do tempo.

A animação ecoa em vários momentos o longa metragem Wall-E, seja pela ambientação, pela relação com a natureza ou pela história de amor. E, esta história de amor, amizade e resiliência entre os robôs 001 e 002 promove uma reflexão sobre a natureza humana e a capacidade de regeneração mesmo em tempos sombrios.

Em uma aventura pela mente de uma criança inventiva, Manu Sonha com Onças, dirigido por Daniel Oliveira Garcia, é uma poesia visual e pessoal. A história é contada através dos sonhos de uma garota que se transforma em onça. Manu brinca de ser onça durante o dia, pregando peças e divertindo seus pais, ao mesmo tempo em que de noite, a garota se transforma no felino, sem precisar lidar com as amarras físicas, enquanto dorme.

O filme, feito em parceria com a filha do diretor, é uma celebração da imaginação infantil. A riqueza estética do filme, apresentada em traços simples e delicados como os das ilustrações de livros infantis é impulsionada pela honestidade emocional do viver de uma criança. A animação revelou-se como uma obra que reflete desejos que habitam os sonhos que sonhamos dormindo ou acordados. Manu Sonha com Onças é o registro da parte de uma vida e uma declaração de amor de um pai para sua filha.

Por fim, Tardes no Escarafuncha, dirigido por Fernando Ferreira Garróz, mexe com algo muito particular em quem passou a infância imerso nas produções Hanna-Barbera. A animação foi desenvolvida com o traço que já vimos em todos os clássicos exibidos na TV aberta do anos 1970 até os anos 1990, que depois foi reconfigurado e mantido no visual e imaginário dos espectadores através de títulos como Mansão Foster Para Amigos Imaginários e As Meninas Super Poderosas.

Além da escolha estética de Fernando, muito bem desenvolvida e aplicada, a animação nos envolve em um universo de referências da cultura pop, apresentando um antiquário como um espaço onde ideias e inspirações podem surgir a qualquer momento. Assim sendo, o filme, repleto de homenagens às artes visuais e à literatura, cita, recita e ‘memetiza’ o excesso de informações que acumulamos ao longo da vida, não como crítica, mas sim como celebração da criatividade e da diversidade artística.

Suas personagens são encantadoras e magnificamente completadas no momento que o diretor dá aos seus personagens as vozes, e falo da voz literal e auditiva que povoa nossos ouvidos e imaginários, de Luiz Carlos de Moraes, dublador de Anthony Hopkins e do Sr. Sirigueijo de Bob Esponja e Charles Emmanuel, o Mutano, de Jovens Titãs, entre outras.

Ao fim da sessão, percebo que cada filme exibido no Festival Lanterna Mágica é mais do que uma simples obra cinematográfica. O que ganhamos são convites para explorar novos universos e celebrar a magia do cinema. Neste dia de cobertura, o público teve a oportunidade de se perder em mundos encantados e sair transformado pela experiência única que só o cinema pode oferecer.

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Artista visual, desenhista, graduanda em Letras - Tecnologias da Edição. Membro Abraccine, votante do Globo de Ouro (Golden Globe Awards). Pesquisadora de cinema, principalmente do gênero fantástico, bem como representação e representatividade de pessoas negras no cinema. Devota da santíssima trindade Tarkovski-Kubrick-Lynch.

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