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[43ª Mostra de São Paulo] O Farol (The Lighthouse, 2019)

Esta crítica faz parte da cobertura da 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 17 e 30 de outubro na cidade.

Depois do sucesso de A Bruxa, o cineasta Robert Egger retorna ao gênero terror com O Farol. Novamente um filme de época, dessa vez na virada do século XIX para o século XX, acompanhamos um faroleiro, Thomas Wake (Willem Dafoe) e seu novo assistente Ephraim Winslow (Robert Pattinson), que são deixados por um barco na ilha onde se localiza o farol em que trabalharão pelas próximas quatro semanas.

Brutos no tratamento, logo se estabelece uma dinâmica de poder na relação entre os dois em que Thomas humilha Ephraim, parecendo querer testá-lo a todo momento. O aprendiz, por sua vez, tem no local uma possibilidade de recomeço: se recusa a beber (o que pode indicar um descontrole de sua parte em relação ao álcool) e pouco fala sobre seu passado no Canadá, que pode esconder algo. Willem Dafoe e Robert Pattinson estão, ambos, entregues a seus papéis, com atuações consistentes e enérgicas.

Assim como em A Bruxa, aqui se estabelece um contexto que é mergulhado no senso de crença (cristã e não-cristã) e na possibilidade de redenção que aquele lugar inóspito e hostil possibilitaria. O próprio farol, com seu belo jogo de espelhos, é uma luz que guia, mas que também atrai para si e que tem em Thomas um guardião, que não quer permitir Ephraim de acessá-lo. As sereias e as gaivotas se somam à mitologia particular do lugar.

O trabalho elegante de design de produção, especialidade de Eggers, se destaca. Na casa que abriga os dois trabalhadores tudo é encardido e decrépito, como se nenhum cuidado tivesse tido por parte dos moradores anteriores. A sensação é, também, de uma umidade quase palpável. A fotografia, com enquadramentos precisos, dessa vez é realmente em preto e branco (em A Bruxa tinha apenas as cores filtradas), o que ajuda a não só conferir um aspecto velho, como decadente a tudo que captura, além de intensidade adicional à narrativa. Os sonhos, por sua vez, adquirem uma estética expressionista. A razão de aspecto de 1:19, que cria uma imagem quase quadrada, ajuda a ampliar a sensação de confinamento dos personagens, essencial para a narrativa.

Isolados nesse local, os protagonistas se vêm em uma rotina claustrofóbica, que se traduz ao público como uma narrativa dramática e imersiva. Thomas deixa claro a importância da manutenção dos ritos para que a vida faça sentido ali, ao mesmo tempo em que demostra desprezo pela obediência às regras. O espaço sufocante faz com que a relação entre ambos, confusa desde o começo, rapidamente degringole e as dinâmicas de poder se invertem constantemente. O fato é que as identidades se borram e os passados dos personagens se fundem. Logo não temos mais certeza se Thomas é Thomas ou se Ephraim é Thomas. A incerteza aumenta já que não é possível saber se o velho faroleiro está realmente tentando confundir seu assistente, se a confusão acontece uma camada acima, com Eggers brincando com a plateia ou se são ambos. As quatro semanas podem ter se passado, ou menos que isso, ou mais que isso e nós perdemos a noção do tempo junto com os personagens, ampliando a sensação de desconforto. Esse desconforto, quase físico, é intensificado pelo desenho de som, que, entre os gritos agudos das gaivotas e barulho das engrenagens do mecanismo que mantem o farol girando, nunca permite o silêncio.

Como em A Bruxa, além da fé, a sexualidade é outro tema latente. O isolamento e a solidão ajudam a transparecer uma tensão sexual cada vez mais latente nas interações entre ambos os personagens. Do aspecto fálico do próprio farol à visão de uma enorme vulva no corpo de uma sereia, as imagens de teor sexual atormentam especialmente Ephraim. A feminilidade das sereias é projetada por eles como sendo de uma passividade traiçoeira. Mas eles mesmos estão envoltos em demonstrações de masculinidade, que, embora ativa, é usada para tentar os limites um do outro. Há poucos momentos em que há espaço para vulnerabilidade e nesses, quando o desejo sutilmente ensaia se manifestar, vem acompanhado da violência que deve impedi-lo. A violência é a forma como os homens retratados encontram de lidar com seus corpos e seus anseios, da masturbação nada erótica ao ato de responder com a força à atração pelo outro. A lógica do filme é a de não expressão desses desejos delineados mas não manifestos.

Se em A Bruxa a temática central era a vilificação da possibilidade de uma sexualidade feminina, aqui o que temos é a tensão sexual se resolvendo no soco, como se a masculinidade, como um fardo, impedisse a expressão dos sentimentos e a exploração dessa sexualidade. A intensidade das emoções e o apuro estético, típico de Eggers, contribui para elevar o filme. Realidade e sonho se misturam e Thomas e Ephraim também, sendo dois homens que expressam um só padrão dessa masculinidade. O Farol é um filme intrigante e de camadas, sobre ditos e não-ditos, sobre homens incapazes de viver em suas próprias peles, sobre violências e desejos (e violências dos desejos).

Nota: 4 de 5 estrelas
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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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