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[44ª Mostra de São Paulo] Coronation

Esta crítica faz parte da cobertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 22 de outubro e 4 de novembro em formato online.

Estamos em um momento em que a pandemia de COVID-19 ainda não acabou, bem pelo contrário: diversos países estão intensificando medidas restritivas novamente. Ao mesmo tempo, no Brasil, tais medidas de controle da pandemia nunca existiram e, com as ações sendo pautadas na esfera individual, e não governamental, uma boa parte das pessoas não tiveram sequer a opção de escolher o distanciamento social e outras tantas estão abrindo mão dele. E é nesse contexto que assisti ao documentário Coronation, de Ai Weiwei: me aproximando do meu oitavo mês em casa. O filme aborda os primeiros meses de ação contra o coronavírus na província de Wuhan, na China, onde os primeiros casos da doença foram detectados e a população de 11 milhões de pessoas foi colocada em lockdown.

A primeira parte do documentário foca nas consequências mais urgente em relação ao vírus: a necessidade de controle dos contaminados, os complexos hospitalares e os desdobramentos na saúde das pessoas internadas. Com poucas falas e nenhuma legenda informando dados, o filme se vale das imagens e de todo o tempo possível acompanhando a lentidão dos processos como um ritual. E assim os inserimos na rotina cansativa das pessoas profissionais de saúde, vendo uma se deslocando por corredores sem fim em um plano longo; outra dormindo em uma cadeira, com a cabeça pendendo contra o peito, por pura exaustão; ou ainda acompanhando todas as etapas de desinfecção, assistida por uma câmera de segurança, para que uma terceira possa sair do recinto.

A exatidão de todos os movimentos e métodos, assim como a complexidade dos equipamentos de proteção individual, a brancura dos cenários, o vazio das paisagens captadas por drones e o silêncio fazem com que o filme adquira ares de ficção científica. E todos esses protocolos utilizados são a prova patente de que no Brasil nada de concreto foi feito para conter o vírus e as pessoas da área da saúde, mal tendo acesso à máscaras, foram colocados de frente ao perigo maior.

Mas o documentário também propõe outras reflexões, de caráter mais político, sobre as medidas adotadas pelo governo chinês. Logo de início percebemos que a entrada de Wuhan é condicionada à entrega do número de celular na fronteira, de maneira que, pelo gps, se saiba a localização da pessoa. Alguns profissionais recomendam que se filme paisagens bonitas ou outros elementos que não gerariam pânico em quem assistisse ao filme. As discussões aí passam a focar na pouca clareza das informações, na arbitrariedade de certas ações e na forma como, se valendo da pandemia, o monitoramento dos cidadãos foi facilmente estabelecido.

Dessa forma, Ai Weiwei consegue abordar dois aspectos aparentemente contraditórios, mas na prática complementares, das ações do governo da China: de um lado a eficiência das suas ações, de outro a estrutura pronta para a vigilância e a burocracia paralisante. Diante das 160 mil mortes oficiais (e é importante destacar o “oficiais”) e contando no Brasil, é desolador pensar em todas que poderiam ter sido evitadas caso o país tivesse uma estratégia para lidar com a pandemia. O que o filme questiona, claro, é do que se abre mão para ter acesso a isso. A proposta de filmar e lançar o documentário tão rapidamente, enquanto ainda estamos vivendo toda essa situação, torna-o mais interessante, pois Coronation já nasce como um documento historicamente posicionado.

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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