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[44ª Mostra de São Paulo] Isso Não é um Enterro, é uma Ressurreição

Esta crítica faz parte da cobertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 22 de outubro e 4 de novembro em formato online.

Mantoa (Mary Twala) é uma uma viúva que vive em uma aldeia na região chamada de Nazaré, no Lesoto. O pequeno país incrustrado no meio da África do Sul é o pano de fundo para a história dessa mulher, que espelha tantas outras, sobre as mudanças que chegam. Depois de perder o marido, todos os filhos, com exceção de um, e os netos, a senhora de 80 anos recebe a notícia de que o filho sobrevivente, que trabalha em uma mina no país vizinho, também faleceu. Isso Não é um Enterro, é uma Ressurreição, escrito e dirigido por Lemohang Jeremiah Mosese, nos coloca junto à dor dessa mulher, que é mais que luto, é a busca por sua própria terra.

O cineasta capta a beleza das paisagens locais em lindas tomadas ao ar livre, que retratam o campos verdes, os pinheiros, as flores e o céu azul. Ali perto, no rio, o governo planeja construir uma barragem que inundará toda a aldeia e as covas ancestrais de pessoas que ali já viveram. Por isso todos precisam se mudar e tal fato se desdobra politicamente, envolvendo o líder local, o padre, a senhora e até o ministro, a quem ela busca para pedir ajuda para a sua situação.

Ela, que já perdeu todos, não vê porque sair. Em certo momento afirma que todas as placentas de suas mãe estão enterradas naquela terra. Essa é a terra-Mãe, a terra que lhe deu vida, a terra que acolheu seus mortos, a terra a que seu corpo pertence. Há algo de sacro no lugar.

De um lado se fala em desenvolvimento, de outro sobre como isso profanaria os mortos. E aí a religiosidade local acrescenta uma camada a mais na leitura da história, uma vez que as canções antigas de iniciação e a memória dos deuses que ficam para trás se misturam às rezas e cânticos cristãos. Nessa Nazaré, Lazaro não ressuscita. O padre fala que a igreja foi construída em 1850 e o sino foi confeccionado com pontas de lança derretidas. A luta tradicional abrindo espaço para a luta da fé colonizadora, que é incorporada mostrando que as mudanças já eram anteriores. “Nada jamais vai durar”. Mas são essas misturas de crenças que também são colocadas na luta, ao mesmo tempo que referenciadas imageticamente, como quando o padre, sem querer, quase em frenesi, imola uma ovelha e suja suas mãos de sangue.

Existe uma circularidade nas ações de passado e futuro que se reflete na casa com parede de terra e pedra, porta vermelha e telhado de palha, de planta também circular. A câmera roda no ambiente captando-o em sua ausência de ângulos e arestas. Da mesma forma a câmera circunda Mary Twala, para retratar as emoções da personagem que interpreta. Há uma força latente em seu rosto pétreo marcado pelo tempo e registrado em longos closes.

Além das paisagens, a fotografia também se esmera na criação de quadros memoráveis. Os tecidos azuis e vermelhos da cama emolduram a personagem em um quadro, assim, como as ovelhas que a rodeiam na ausência das paredes que antes a protegiam e, como em Rastros de Ódio (1956), a porta emoldura o momento da saída.

A jornada de Mantoa é dura, mas a beleza com que os elementos visuais são trabalhados deleitam quem a acompanha. A possibilidade de ser removida do seu lugar de ancestralidade e o êxodo que se anuncia vêm como a marcha inexorável do tempo. Como pode uma pessoa lutar só contra ele? Mantoa luta se despindo de tudo que antes era seu. Isso Não é um Enterro, é uma Ressurreição é mais que uma reflexão sobre o qual conceito de modernidade que cabe nas histórias das pessoas: é demonstração da possibilidade silenciosa de escolher quais mudanças serão assimiladas e quais descartadas, por um corpo que é terra. A ressurreição é a insurreição nos olhos de uma menina.

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Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

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