Cinema,  Críticas e indicações,  Filmes

[49 Mostra de São Paulo] Cover-Up


Este texto faz parte da cobertura da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 16 e 30 de outubro.


É possível que Laura Poitras tenha entrado no seu radar, como no meu, com Citizenfour (2014), seu documentário sobre Snowden. Sempre acho interessante como os bons documentários muitas vezes flertam com a etnografia, o jornalismo ou ambos. Citizenfour foi na linha do jornalismo investigativo. E agora com Cover-Up, dessa vez em parceria com Mark Obenhaus, ela faz um documentário mais convencional, mas que retrata e de certa forma homenageia Seymour Hersh, um jornalista vencedor do Pulitzer nessa linha de trabalho.

O filme apresenta a carreira do retratado principalmente por meio de seus relatos, ele sentado em sua mesa, muitas pilhas de pastas e caixas de arquivos de casos antigos ao redor, intercalado por fotos apresentadas como slides. Alguns outros interlocutores entram como contraponto em certos momentos. Não é a linguagem mais interessante possível, mas os fatos relatados compensam.

Hersh, que desde cedo cuidava da lavanderia da família, acabou ganhando uma bolsa de estudos para cursar jornalismo. Pouco tempo depois começou a atuar como jornalista policial e daí em diante se embrenhou em trabalhos cada vez mais complexos. Uma carreira dedicada a lidar com temas espinhosos da gropolítica: foi ele quem denunciou o genocídio que os soldados estadunidenses estavam cometendo no Vietnã, com relatos de aldeias dizimadas, incluindo bebês. A mãe de um militar disse a ele “eu entreguei um bom rapaz e eles me devolveram um assassino”, o que sem dúvida rende uma ótima manchete.

Desenvolvimento nebuloso de armas químicas. Golpe de estado na América Latina. Espionagem ilegal de cidadãos estadunidenses pelo próprio governo. Desse período conturbado da história dos Estados Unidos, Poitras compartilha até mesmo um áudio do então presidente Nixon chamando Hersh de comunista em uma conversa pessoal. Como ela teria conseguido esse arquivo?

Mas sua carreira se estendeu por todas essas décadas, não parou nesse momento. Culminou na denúncia da tortura de prisioneiros iraquianos pelos soldados estadunidenses em Abu Ghraib, no Iraque, em 2004. As imagens que ele recebeu e divulgou circularam pelo mundo todo colocando em perspectiva a visão dos Estados Unidos sobre si mesmos. De novo. E quem diria que na terra da liberdade eles também gritam para a imprensa livre ir para Cuba?

Um dos feitos do documentário é mostrar os métodos jornalísticos do retratado, que segue recebendo ligações de suas fontes enquanto a câmera está rolando. Mas também não se furta de mostrar quando e como erra, quando acredita demais em uma fonte única que se mostra pouco confiável.

Hersh afirma ter levado vinte anos para aceitar fazer esse documentário desde o primeiro convite de Poitras. Não queria revelar suas fontes nem detalhes ainda mantido em algum nível de segredo de seus casos. Talvez se ela tivesse esperado mais uns cinco ou dez anos para sua produção, alguns detalhes agora ainda secretos pudessem ser melhor discutidos, mas é compreensível que depois de tanta espera haja ansiedade em realizá-lo o mais rápido possível. Cover-Up mostra uma nação sempre pronta a atirar no mensageiro e os meandros de um jornalista que ainda acredita no propósito de sua profissão.


Essa cobertura foi possível graças ao nosso financiamento coletivo. Agradecemos em especial a: Carlos Henrique Penteado, Gizelle Barros Costa Iida, Helga Dornelas, Henrique Barbosa, João Bosco Soares, Janice Eleotéreo, José Gabriel Faria Braga de Carvalho, José Ivan dos Santos Filho, Lorena Dourado Oliveira, Lucas Ferraroni, Marden Machado, Mariana Silveira, Nayara Lopes, Patrícia de Souza Borges, Pedro Dal Bó, Vinicius Mendes da Cunha, Waldemar Dalenogare Neto, Zelia Camila de O. Saldanha.

Crítica de cinema, doutora em Antropologia Social, pesquisadora de corpo, gênero, sexualidade e cinema.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *